Um segredo anti-vírus

Mesmo que nos sintamos a cair “num poço sem fundo”, infetados por vírus, pelo medo, ou por vírus próprios de um coração cuja sensibilidade vive virada para si mesma, com Deus nunca caímos em direção a um nada existencial.

Ontem à noite ouvi uma história maravilhosa.

É uma história pequena, sem por isso deixar de estar repleta de significado.

É uma história sobre os vírus que podem ser fabricados nos laboratórios dos nossos corações, perante um uso medíocre da nossa liberdade, mas sobretudo da respetiva cura encontrada para esses mesmos vírus, cura essa que está ao alcance de todos nós.

Ora, entre um bom jantar, um mini concerto caseiro e palhaçadas em família, passei o resto da noite de sábado a ouvir a minha Mãe contar-me histórias sobre a sua avó, minha bisavó.

Conheci-a em pequena, não tendo, no entanto, grandes memórias nítidas sobre a sua pessoa. Lembro-me apenas da textura acetinada da sua pele, que quando tocava na nossa, nos dava uma sensação de conforto, de pequenino paraíso de texturas mimosas, que nos levavam para um lugar de carinho e de paz.

Acima de tudo, vou conhecendo-a através do que a minha Mãe me conta, através destas histórias que me fazem senti-la tão próxima, como se tivesse vivido na intimidade do seu colo, durante muitos anos.

Era uma pessoa extraordinária, de uma alegria e de uma sensibilidade ímpares, daquelas pessoas que todos queremos ter sempre por perto.

No entanto, não vos vou falar da sua vida, nem da sua personalidade sensível, apenas de uma pequena história que ouvi e que resume em muito a valiosa lição que fui aprendendo, durante a longa quarentena que marcou a minha família, tendo estado todos infetados, durante 45 dias, com o muito falado vírus que se tem entranhado nas nossas vidas e nos nossos corações.

A minha bisavó era uma pessoa de sonhos – daquelas que investem e sonham com sonhos, não só com os seus, mas principalmente com os dos outros.

Pois era a minha mãe uma mera adolescente, quando a sua avó lhe mostrou onde guardava esses mesmos sonhos.

Mal recebia a sua pequena reforma, separava de imediato o dinheiro em pequenos envelopes, destinando-os aos sonhos dos anos, da páscoa, do natal, das suas netas. Só depois de separado esse dinheiro é que sabia o que lhe sobrava para gerir a sua vida. De seguida, pegava nesses mesmos envelopes e guardava-os num cofre, até ao dia em que o momento de concretizar os sonhos chegasse.

O segredo desta história é muito simples, assim como é simples o segredo da sua enorme sensibilidade. O que guardava nos envelopes era algo mais precioso do que o dinheiro, eram intenções, era o carinho enorme que tinha pelas netas e a vontade firme de as amar e de as fazer felizes.

O segredo desta história é muito simples, assim como é simples o segredo da sua enorme sensibilidade. O que guardava nos envelopes era algo mais precioso do que o dinheiro, eram intenções, era o carinho enorme que tinha pelas netas e a vontade firme de as amar e de as fazer felizes. Nos envelopes não ficava guardado um tesouro monetário valioso, ficavam guardados sonhos…até ao dia…

Era assim uma investidora nata. Tão excecional, que daria “dez a zero” ao Warren Buffett, pois quem investe em relações e não no material, por mais que perca, sai sempre a ganhar. Não era daquelas investidoras que guardam todo o seu tesouro num cofre fechado a sete chaves, para ninguém jamais o encontrar, mas daquelas que sabe o que guardar no cofre do seu coração, que sabe como cuidar dos tesouros que eram as suas relações, e que sabe que tudo o que é bom, deve ser partilhado, para que assim se multiplique, cresça e dê bom fruto.

Não era uma investidora de medos, nem zangas, nem de desencontros, nem de nada que fosse estéril e não desse fruto. Percebia o alcance maravilhoso de uma sensibilidade bem direcionada, e era nisso que investia o seu tempo, os seus recursos e, acima de tudo, o seu coração. Tinha, deste modo, uma sensibilidade imensa e sabia que por isso viria a sofrer ao longo da vida sem, mesmo assim, deixar de abarcar no seu coração todos aqueles que precisassem – pois, afinal, sabia ser essa a missão da sensibilidade humana. Tinha assim um coração crente, um coração que acreditava no outro e que por isso o capacitava e, acima de tudo, tinha um coração, que por ser tão descentrado do seu “eu” e por ser tão bem trabalhado, ia aumentando de tamanho, à medida que os anos passavam, e tornando-se mais elástico, não para ocupar mais espaço com os seus assuntos, mas para que lá coubessem, cada vez mais, todos os que precisassem de amor e de um espaço no coração de alguém.

E a cura, para esse mesmo vírus, passa pelo seguinte: por trabalhar um coração forte como um cofre, tornando-se num guardador e investidor de sonhos e de vidas concretas.

Esta foi a lição destes últimos tempos, tempos desafiantes e até desgastantes, tempos de um enorme crescimento e de uma grande viragem para fora, para os outros. Foi esta a lição que ajudou a curar o verdadeiro e mais perigoso vírus que nos assola – aquele que infeta e contamina os nossos corações.

E a cura, para esse mesmo vírus, passa pelo seguinte: por trabalhar um coração forte como um cofre, tornando-se num guardador e investidor de sonhos e de vidas concretas; um coração que arranja sempre espaço para o outro entrar; que no meio da incerteza não se fecha no conforto de achar-se vítima das suas circunstâncias, apostando no futuro, pois vive firme na única certeza que verdadeiramente podemos ter, a de que para Deus, não existem nem trevas, nem luz, apenas Amor. E que, por isso, mesmo que nos sintamos a cair “num poço sem fundo”, infetados por vírus externos a nós, pelo medo, ou por vírus próprios de um coração cuja sensibilidade vive virada para si mesma, nunca caímos em direção a um nada existencial, “caímos” pois no colo de um Pai que nos carrega sempre, que ama sempre, pois para quem vive em Deus e com Deus, não existem nem trevas, nem luz, apenas um continuum de Amor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.