Identificação com Cristo e simplicidade de vida

Se nos deixarmos ir ao encontro das bem-aventuranças, verificamos que a “simplicidade de vida” abraçada por Jesus, coincide com uma existência mais plena, na qual o Espírito Santo ocupa a centralidade da vida.

Há exatamente cinquenta anos Pedro Arrupe, Padre Geral da Companhia de Jesus de 1965-1981, proferiu uma conferência intitulada “Simplicidade de vida”[1]. O tema desenvolvido nesta conferência continua a ser pertinente e atual. A expressão “simplicidade de vida” tem aqui o significado equivalente a “pobreza evangélica”. Neste texto, P. Arrupe procura, por um lado, ir às raízes do cristianismo e às fontes da espiritualidade inaciana e, por outro lado, evidencia uma profunda atenção e reflexão relativamente aos desafios colocados por um mundo materialista que se vai impondo a um ritmo acelerado.

Situemos este texto no seu contexto: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945); a reconstrução no pós-guerra e o sucessivo boom económico; a descolonização; a Guerra Fria; a crise dos mísseis de Cuba (1963); o Concílio Vaticano II (1962-1965), do qual decorre uma Igreja mais comprometida com a justiça e a paz; a obra emblemática Limites do crescimento (1972), que reconhece a contradição entre crescimento económico exponencial e recursos naturais limitados e a Conferência de Estocolmo (1972), primeira grande reunião de chefes de estado organizada pelas Nações Unidas para tratar das questões ambientais.

Percorrendo todo o texto, há um padrão que se repete e que se acentua cada vez mais nos nossos dias: o que é afinal a “simplicidade de vida?“. Pedro Arrupe diz que “não pode chamar-se vida de singeleza a de quem para si procura o mais confortável do mercado em móveis, aquecimento, ar condicionado; numa palavra, a simplicidade anda ameaçada por duas forças: egoísmo e sociedade de consumo”; “a abundância comercial e a sua escravizadora propaganda”; “a sensualidade leva-nos a evitar todo o incómodo e a querer gozar da vida e das vantagens que a sociedade de consumo com o seu conforto e regalo nos oferece”; “se numa sociedade de progresso económico, de abundância e de consumo não tivermos desprendimento, corremos o risco de fazer-nos escravos”; “qual deve ser a nossa atitude perante a sociedade de consumo, com seu materialismo, sua busca de conforto, do poder, da riqueza?”; “um mundo cuja preocupação é buscar o conforto, a eficiência, a abundância, ânsia de consumo, de possuir coisas, dinheiro, quanto conduz à sensualidade, gastos excessivos, própria satisfação, prazer”; “multiplica-se a ânsia de consumir, e está ao alcance de todos toda a classe de entretenimentos: turismo, TV, filmes, teatro e coisas semelhantes”[2].

A constatação desta realidade, face à qual Pedro Arrupe propõe uma reflexão, faz emergir, em contracorrente, as primeiras palavras de Jesus registadas por S. Mateus: “Felizes os pobres de coração porque deles é o reino dos Céus”[3]. O coração a que se refere Jesus diz respeito à interioridade e aos afetos, dele dependendo a unificação da pessoa toda e a fecundidade das diferentes faculdades humanas. As oito bem-aventuranças, carta magna do cristianismo, têm na base a pobreza de coração “por causa de Jesus”[4]. Um coração que se esvazia e acolhe o reino dos Céus como único tesouro.

Os Exercícios Espirituais (EE) de S. Inácio de Loiola estão também em sintonia com esta simplicidade e pobreza do coração. Neles, o objetivo é também ajudar o exercitante a identificar-se sucessivamente com Jesus, cuja existência terrena foi pautada pela pobreza. Da disposição para acolher a pobreza (espiritual mas também material) e as próprias humilhações, decorre a humildade (EE 146). Assim, conjugando humildade e acolhimento da vontade de Deus, desponta no exercitante uma crescente experiência de liberdade (EE 155). E ao longo deste processo, numa crescente identificação com Jesus, o exercitante aspira, pela graça de Deus, a tornar-se num “louco por Cristo” (EE 167).

Os Exercícios Espirituais (EE) de S. Inácio de Loiola estão também em sintonia com esta simplicidade e pobreza do coração. Neles, o objetivo é também ajudar o exercitante a identificar-se sucessivamente com Jesus, cuja existência terrena foi pautada pela pobreza.

Ao fazermos uma breve incursão na vida de Inácio de Loiola, constatamos que é após um ferimento de guerra e uma longa convalescença que ocorre a sua conversão (1521). Seguidamente Inácio assume-se peregrino mendicante, aprofunda a sua experiência espiritual e partilha-a com outros. E, progressivamente, Inácio vai sentindo cada vez mais a necessidade de estudar e aprofundar os seus conhecimentos em teologia para, de um modo mais discernido, poder acompanhar espiritualmente os outros. A realização destes estudos foi também exigida pelas autoridades eclesiásticas como uma condição para poder fazer o acompanhamento espiritual. No sentido de satisfazer este desejo pessoal e exigência eclesiástica, Inácio passa a recorrer a benfeitores a fim de poder custear os seus estudos. É durante os estudos realizados na Universidade de Paris (1528-1535), que Inácio vai conhecer a maioria daqueles que virão a integrar o grupo fundador da Companhia de Jesus (SJ), que surge como resultado dum longo processo (1540). Inácio é eleito primeiro Padre Geral da SJ em 1541, cargo que vai exercer em Roma até à sua morte em 1556.

A simplicidade da vida de Inácio evidencia-se também durante os doze últimos anos, de 1544 a 1556, durante os quais viveu num edifício mal construído que resistiu apenas até 1598. O último andar deste edifício é constituído pelas “camerette”, três ou quatro “quartinhos” com funções distintas: capela, quarto de dormir, escritório e um pequeno terraço, de onde contemplava as estrelas. Era neste espaço de grande simplicidade que Inácio acolhia os companheiros missionários que vinham de passagem. A designação “camerette” não podia ser mais ajustada quando consideramos que este edifício era sóbrio, as divisões pequenas, com um pé direito baixo e com as traves do teto à mostra. Em 1598 este edifício foi destruído e em seu lugar foi construído um dos típicos palazzi do centro de Roma. Só com uma obra extraordinária do ponto de vista de engenharia e arquitetura foi possível conservar as “camerette”, ainda hoje visitáveis[5]. O contraste entre o edifício anterior e o novo testemunha a pobreza da SJ nascente que Inácio governou e difundiu pelo mundo.

Ao longo de um ano (1543-1544) Inácio discerniu sobre qual seria o específico da pobreza vivida na SJ. O registo deste discernimento constitui o seu Diário Espiritual. Em conclusão, Inácio faz a seguinte distinção: as comunidades da SJ têm de ser pobres, em contrapartida, as obras (por exemplo, colégios) podem ser financiadas com rendas ou fundações, pois encontram-se ao serviço da sociedade. Inácio deixa indicações nas Constituições da SJ (nº 553-554) no sentido de que a pobreza nunca seja relaxada. E segundo ele “é necessário amar a pobreza como mãe e defendê-la como muro forte da religião”[6].

Se nos deixarmos ir ao encontro das bem-aventuranças, verificamos que a “simplicidade de vida” abraçada por Jesus coincide com uma existência mais plena, na qual o Espírito Santo ocupa a centralidade da vida. Neste sentido, P. Arrupe diz que “o Espírito Santo faz-nos entender o que na vida espiritual é o mais subido e mais difícil de tudo, isto é, que achar-se na pobreza da cruz é um gozo”; “a verdadeira pobreza desenvolve uma espiritualidade alegre, vigorosa, viril”; “a pobreza gera no meio dos trabalhos gozo e alegria tão íntimos, tão grandes que quem não os experimentou, dificilmente os pode imaginar”[7].

Poderemos então concluir que P. Arrupe sublinha o acento cristológico da simplicidade de vida: “Como realizar na prática, hoje, a simplicidade de vida? A solução só se encontra por meio de uma experiência pessoal interior de fé e de amor a Cristo pobre. Esta experiência liberta-nos para fazer o que o amor de Cristo e o zelo apostólico nos pedem. O nosso principal esforço há de ser o de procurar no mais íntimo do nosso ser o contacto com o Espírito que nos pode só ensinar o que é a verdadeira pobreza e a simplicidade de vida. Esta conversão interior à pobreza de Cristo é ao mesmo tempo condição indispensável e o primeiro passo para a realização nas nossas vidas da própria vida de Cristo”[8]. Ora isto tem implicações profundas e práticas na vida de todo o cristão assumido.

Na atualidade temos também duas encíclicas do pontificado do Papa Francisco, Laudato si’ (2015) e Fratelli tutti (2019), que alertam para a situação de sofrimento alarmante à escala do mundo. Para responder “tanto ao clamor da terra como ao clamor dos pobres”[9] é necessária na história da humanidade uma mudança de época. A mudança de paradigma na relação do Homem com a Criação e na relação dos diferentes Povos entre si passa por uma conversão ecológica, pressupondo um estilo de vida mais simples. A respeito desta mudança de paradigma, Pierre Rahbi utiliza a expressão “sobriedade feliz”[10]; e Gael Giraud e Carlo Petrini SJ usam a expressão “transição ecológica como via para a felicidade”[11]. Ambas as expressões são sugestivas e em sintonia com o que P. Arrupe disse há cinquenta anos.

 

Referências:

[1] Pedro Arrupe, “Simplicidade de vida”, conferência proferida a 29 de dezembro de 1973 e dirigida a jesuítas.
[2] Pedro Arrupe, “Simplicidade de vida”, nº 2, 3, 11 e 14.
[3] Cf. Traduction OEcuménique de la Bible, Cerf, Paris 2012, Mt 5, 3.
[4] Mt 5, 11.
[5] Pesquisar com motor de busca “Le stanze de Sant’Inazio”.
[6] Pedro Arrupe, “Simplicidade de vida”, nº 8.
[7] Ibid, nº 9 e 10.
[8] Pedro Arrupe, “Simplicidade de vida”, nº 16.
[9] Papa Francísco, encíclica, Laudato si’, nº 49.
[10] Éric Chametant SJ et Jerôme Gué SJ, Parcours spirituel pour una conversion ecologique, L’appel de Lautato si’, Éditions Vie chrétienne, Paris 2020, pp. 58-59, 117-120. Esta expressão retoma o título dum livro de Pierre Rahbi.
[11] Gael Giraud SJ e Carlo Petrini, con Stefano Arduini, Il gusto di cambiare, La transizione ecologica come via per la felicità, Prefazione di Papa Francesco, Slow Food Editore e Libreria Editrice Vaticana, pp. 131-139.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.