Sobre os 50 anos de «Humanae Vitae»

Nos 50 anos de «Humanae Vitae» talvez seja já tempo de pararmos de pensar no que a encíclica não fez e começarmos a pensar o que nós, como Igreja, temos ainda de fazer.

Cumprem-se este Verão 50 anos da famosa encíclica Humanae Vitae e a redondeza da efeméride, porventura associada ao anúncio da canonização do Papa Paulo VI que a assinou, tem motivado um revisitar do documento. Talvez não seja o único caso em que isso acontece, mas é seguro afirmar que uma grande parte da fama da encíclica continua a vir do que ela “não disse” – esta é o famigerado texto em que a Igreja não disse que o amor entre um homem e uma mulher era o que o mundo dizia que era, em que a Igreja não disse que a contracepção era um direito, em que a Igreja não legitimou o uso da pílula, de preservativos ou de outros métodos contraceptivos, nem sequer no contexto de uma relação estável, duradoura, e onde em geral houvesse vontade de gerar filhos.

Compreende-se bem que seja isso que a torna famosa. Estes eram os assuntos da ordem do dia naquele tempo, aquecido pelas revoltas dos estudantes em Paris. Além disso, a Igreja estaria particularmente interessada e atenta aos sinais dos tempos e às possibilidades de diálogo com a cultura e as ideias contemporâneas, num desejo de abertura que é a sua vocação desde sempre e que o Concílio Vaticano II sublinhou como urgência. E é famosa a história da “Comissão para o estudo dos problemas da população, família e natalidade”, em que apenas uma minoria dos especialistas consideraram que a Igreja devia manter a sua posição contra o uso de contraceptivos. Mas que interesse tem hoje este documento? A verdade é que a posição da Igreja sobre estes assuntos não se alterou apesar de aparentemente o resto do mundo – ou, em rigor, do Ocidente rico – ter virado a página e aceitado a pílula como um facto. Se se tomar os 50 anos do texto apenas como mais uma ocasião para perpetuar discussões estridentes e fúteis entre alegadas facções dentro da Igreja, em que nenhum dos lados admite a possibilidade de ser corrigido, então, não vale a pena voltar a ele. Se, pelo contrário, a releitura deste texto puder ajudar-nos a aprofundar a nossa união com Cristo, a perceber melhor os critérios da Igreja e contribuir para a discussão e o diálogo que a busca da Verdade requer, então, voltemos a ele.

Em filosofia fala-se do Princípio da Caridade, que consiste basicamente em supor que aquilo que alguém diz ou escreve faz sentido, ou faz o máximo de sentido possível. Recomenda-se, portanto, que ao ouvir ou ler alguém, pensemos primeiro “como é que isto pode fazer sentido” e que admitamos que o nosso interlocutor é um ser racional como nós e não alguém que não joga com as mesmas regras. Se não se partir deste princípio, a comunicação é impossível e a interpretação é mero jogo de fantasia. Só depois de compreender como é que aquilo que está a ser dito “faria sentido” é possível criticá-lo: depende de argumentos falaciosos? Suporta-se em premissas falsas? Implica ideias absurdas? É irónico que um princípio com este nome pareça estar um tanto esquecido em algumas discussões entre cristãos.

Como pode, então, fazer sentido o texto de Paulo VI? Uma sugestão apropriada para tentar compreendê-lo é começar por focar o que diz a encíclica em vez de estranhar o que não diz. Deste lado mais afirmativo, aquilo que é mais vezes mencionado é a descrição da natureza das relações sexuais entre homens e mulheres na sua dupla dimensão unitiva e procriativa. Mesmo sendo possível que este ponto seja o mais importante, vamos deixá-lo de lado por um momento. Há outros dois aspectos que me parecem mais interessantes para começar: a visão absolutamente profética sobre o futuro de um mundo em que a mentalidade contraceptiva é aceite sem ser questionada, no ponto décimo sétimo, e a exortação e o apelo aos “homens de ciência” a que se procure e aprofunde o conhecimento, já quase no fim do texto.

No ponto décimo sétimo, o papa arrisca prever as consequências que se seguirão à aceitação generalizada dos métodos de regulação artificial da natalidade. A primeira é “o caminho amplo e fácil que tais métodos abririam à infidelidade conjugal e à degradação da moralidade”. Não é preciso um grande conhecimento sociológico para admitirmos que entre 1968 e 2018 o mundo evoluiu precisamente nesta direcção. Segue-se uma chamada de atenção para o perigo de “que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada.” Num ano em escândalos relacionados com abusos e tentativas de abusos que originaram hashtags e protestos em passadeiras vermelhas, não será altura de parar para pensar? De questionar esta visão do mundo, da sexualidade? Finalmente, o alerta para o facto de a contracepção poder tornar-se numa “arma perigosa que se viria a pôr nas mãos de autoridades públicas, pouco preocupadas com exigências morais”, e é impossível não recordar a política de filho único, que esteve em vigor na China por mais de 30 anos, ou esterilizações forçadas de partes da população consideradas “menos desejáveis”, mas caberiam aqui também as sugestões veladas sobre o número de filhos a ter ou não ter que se ouvem por vezes em empresas e ambientes profissionais. Na verdade, a espetacular coincidência entre as previsões e a realidade deveria fazer-nos querer ler com mais atenção o resto do texto, e compreendê-lo bem.

O apelo aos homens de ciência também chama a atenção, cinco décadas volvidas, porque sublinha claramente que a posição da Igreja não é uma ingenuidade naturalista, em que se recusa o uso da inteligência. Pelo contrário, o apelo é justamente a que se aplique a inteligência, que se procure fazer crescer a ciência, para que possa servir melhor o homem em toda a sua dignidade. E a verdade é que este apelo foi em grande medida ouvido e dispomos hoje de um corpo maior e mais rigoroso de conhecimento científico capaz de ajudar os casais na regulação generosa e responsável dos nascimentos nas suas famílias.

Há poucas semanas, num espaço completamente não confessional onde se prestam os mais variados serviços de apoio a recém mães e famílias com bebés pequenos, vi um anúncio de um curso chamado qualquer coisa como “fertilidade consciente, contracepção inteligente”. O próprio slogan mostra como não se trata propriamente de um curso de doutrina cristã ou moral sexual católica. A descrição do curso, contudo, pareceu-me muito acertada: dizia que quando o regulamento dos nascimentos passa por um método contraceptivo artificial – um comprimido, um implante, um preservativo, uma cirurgia, seja o que for – a ideia subjacente é “não pensar mais nisso”; a sugestão deste curso era a oposta: vamos pensar nisso, vamos preocupar-nos com este tema.  E na verdade, numa cultura em que as pessoas se preocupam com o número de passos que dão por dia, com a quantidade de açúcares ou gorduras saturadas que ingerem, com os estímulos adequados a dar às crianças para que elas possam desenvolver todas as suas potencialidades, é no mínimo estranho que a saúde reprodutiva consista simplesmente numa demissão de pensar, ou de acompanhar e cuidar. Esta linha de raciocínio, que em si não é essencialmente religiosa, pode também ser um ponto de partida para uma releitura contemporânea do texto de Paulo VI.

Um dos pontos mais controversos da encíclica prende-se justamente com a diferença estabelecida entre o uso de “métodos artificiais de regulação dos nascimentos” (i.e. contraceptivos) e “métodos naturais de regulação dos nascimentos” (i.e. aproveitar os períodos naturalmente inférteis do ciclo reprodutivo da mulher). Argumenta-se por vezes que, sendo o fim o espaçamento legítimo de nascimentos no contexto de uma união matrimonial em geral aberta à vida, o método escolhido não faz diferença. Mas esta conclusão é falsa. Um fim legítimo, ou mesmo bom, não justifica um meio ou acto mau. O fim legítimo de garantir uma boa educação para os meus filhos não justifica que eu assassine alguém que considero ser um mau exemplo para eles.

É, portanto, preciso compreender em que medida é que uma relação sexual tornada propositadamente infértil é distinta de uma relação sexual que acontece não ser fértil. E é neste contexto que surgem as famosas linhas sobre as dimensões unitiva e procriativa das relações conjugais. Este ponto veio a ser também muito enriquecido pelas reflexões do Papa João Paulo II sobre a Teologia do Corpo. Retirar intencionalmente a dimensão procriativa das relações é de certa forma falsificá-las em nome do prazer do casal. Aproveitar intencionalmente os períodos inférteis é usufruir de uma disposição natural pela qual não se é responsável. É talvez uma distinção fina e difícil de apreender à primeira vista, mas o nervo do problema está na intenção: se esterilizar intencionalmente uma relação sexual não estou a fazer a mesma coisa do que se aproveitar um período que é, à partida, estéril, mas que eu não escolhi.

Outra maneira de pensar sobre este assunto é recordar que os seres humanos são seres que se reproduzem sexualmente, o que significa que reprodução e sexualidade são assuntos que naturalmente estariam juntos; que são inseparáveis, na medida em que ganham sentido um no outro. Não devíamos aceitar simplesmente o corte que existe hoje em dia entre estes temas.

Quero fazer notar ainda um fim da frase com que o Paulo VI termina este argumento: “É verdade que em ambos os casos [aproveitamento dos períodos inférteis e uso de contraceptivos] os cônjuges estão de acordo na vontade positiva de evitar a prole, por razões plausíveis, procurando ter a segurança de que ela não virá; mas, é verdade também que, somente no primeiro caso eles sabem renunciar ao uso do matrimónio nos períodos fecundos, quando, por motivos justos, a procriação não é desejável, dele usando depois nos períodos agenésicos, como manifestação de afecto e como salvaguarda da fidelidade mútua.” Este fim encerra o reconhecimento de que é bom e até recomendável que mesmo os casais que por razões legítimas precisam de adiar o nascimento dos filhos cuidem da dimensão afectiva expressa na relação sexual. Mais uma vez, esta linha será depois retomada e desenvolvida por João Paulo II, quando insiste que o próprio corpo “de facto, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele”.

A filósofa britânica Elizabeth Anscombe, num texto que não chegou a publicar, imaginou um cenário alternativo de reacção à encíclica: em vez de um “bom, nada mudou, tudo como dantes” que de alguma forma se demite de aprender e compreender o que está em causa e mais ainda de o propor e explicar, haveria um renovado entusiasmo pela vocação do matrimónio, uma reapreciação da virtude da castidade e uma alegre proposta do ideal cristão. Este cenário não aconteceu. Por enquanto. Nos 50 anos de Humanae Vitae talvez seja já tempo de pararmos de pensar no que a encíclica não fez e começarmos a pensar o que nós, como Igreja, temos ainda de fazer. São João Paulo II já abriu o caminho.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.