Relembrando as Arginusas: um exemplo milenar de linchamento pelas redes sociais

Provavelmente, o que falta a muitos dos que ocupam lugares de destaque nos meios de comunicação é cultura e profundidade de pensamento sobre o Homem em todas as suas vertentes.

Como há muito sublinhou o autor do Eclesiastes (I, 10), “Se de alguma coisa alguém diz: «Eis aí algo de novo!», ela já existia nas eras que nos precederam.” De facto, apesar da extraordinária evolução da tecnologia que marca a vida contemporânea, tornando-a mais rápida e exigente, o ser humano continua o mesmo e a sua história continua a repetir-se. Olhar para a experiência humana passada de modo a pôr em perspectiva o presente é, por isso, prudente e enriquecedor; e é-o ainda mais no contexto da frivolidade e crescente intolerância do nosso tempo.

Foi na Atenas clássica que a democracia nasceu e fez jus ao sentido etimológico da palavra – o poder do povo. A admissão era restrita: em consonância com a mentalidade vigente, os direitos políticos eram exclusivos dos cidadãos do sexo masculino de comprovada ascendência ática, e o voto estava reservado aos adultos com serviço militar; as mulheres, os estrangeiros e os escravos não tinham voz. Em contrapartida, o poder da assembleia dos cidadãos era enorme. Qualquer um deles podia ser chamado a exercer cargos jurídicos, administrativos ou militares, e todos votavam as decisões importantes, como a escolha dos ocupantes de cargos mais influentes, a exclusão de cidadãos incómodos e a aplicação da pena de morte. Os debates na assembleia eram por isso cruciais, sendo marcados pela intriga política e pela arte oratória. Frequentemente a eloquência dos demagogos em busca de votos sobrepunha-se à verdade, à justiça e até à razão, em contraste com o extraordinário florescimento da filosofia, da literatura e das artes. Esta permeabilidade excitável da vida política, olhada com desprezo por outras cidades gregas, pelos vizinhos persas e mais tarde pelos romanos, deu azo a episódios lamentáveis que exemplificam os perigos da manipulação da opinião pública. Um dos mais conhecidos, ocorrido no contexto da dramática fase final da Guerra do Peloponeso, está ligado às ilhas Arginusas e tornou-se num lugar-comum dos perigos da democracia directa.

As águas que cercam estas pequenas ilhas, agora turcas, próximas de Lesbos, foram palco, em 406 a. C., de uma enorme batalha entre Atenienses e Espartanos –  a penúltima da guerra. Atenas obteve um inesperado sucesso que lhe permitiu evitar a ruína imediata, mas essa vitória foi obscurecida pelo seu trágico rescaldo. Devido às condições tempestuosas do mar, os triarcas Trasíbulo e Terâmenes, encarregados de recolher os tripulantes vivos ou mortos dos navios atenienses danificados, falharam a sua missão e tiveram de tentar salvar-se a si próprios. A notícia da perda de tantos homens e o facto de os seus corpos não terem sido recolhidos e sepultados – sentido como um sacrilégio – despertou nas famílias enlutadas a ânsia de encontrar bodes expiatórios. O grande apoio de que gozavam os responsáveis pela missão de salvamento permitiu-lhes escapar a qualquer castigo e instigar à condenação dos estrategas.  Segundo Xenofonte (Helénicas, I, 7), Terâmenes mobilizou os familiares dos mortos, vestidos de luto rigoroso, e o agitador Calixeno para convenceram a assembleia a julgar sumariamente e a condenar à morte os generais, entre eles o filho do recentemente falecido Péricles. Apesar dos apelos de figuras como Sócrates, escalado como supervisor da assembleia, e Euriptólemo – que previu o arrependimento futuro do povo –, a turba insistiu em votar e condenar à morte os estrategas. Quando a poeira assentou, os cidadãos caíram em si e apaziguaram a consciência castigando o demagogo Calixeno com uma tal exclusão da sociedade que morreu de fome – um processo que repetiriam alguns anos mais tarde com os acusadores de Sócrates, constrangidos a exilar-se. Depauperada de líderes, recursos e ânimo, Atenas soçobrou em 404, e só não foi arrasada graças aos escrúpulos do comandante espartano, tocado pela grandeza da sua cultura.

Nestes quase dois milénios e meio, os julgamentos públicos por multidões manipuladas por aparências não deixaram de existir, e persistem nos regimes democráticos evoluídos

O episódio das Arginusas feriu a reputação de Atenas e criou uma profunda e generalizada hostilidade em relação ao regime democrático que tanto a enchera de orgulho: esta democracia directa era um sistema caótico onde os demagogos mais perversos moviam irresponsavelmente as paixões dos cidadãos ao ponto de os levarem a matar outros cidadãos – violando a Verdade e a Liberdade e arruinando a cidade que deviam proteger.

Nestes quase dois milénios e meio, os julgamentos públicos por multidões manipuladas por aparências não deixaram de existir, e persistem nos regimes democráticos evoluídos. Potenciados pelos meios técnicos laboriosamente criados pelo génio humano, assistimos hoje a um alargamento do seu leque de variantes, que mantiveram o seu efeito destruidor. As redes sociais permitem o bullying, a rápida divulgação de notícias falsas e a reacção primária a soundbytes; e os media mais tradicionais funcionam como transmissores solícitos, na sua ânsia de irem ao encontro do público. Nesta linha, muitos permitem fóruns não moderados que apresentam uma vertente assustadora da sociedade, dominada por fanatismos político-desportivos e por uma agressividade desprovida de empatia. Percebem-se derivas intolerantes, de base minoritária, mas que conseguem impôr o seu discurso até aos media, aproveitando a aparente inacção da maioria da população. Mesmo que desmascaradas, as fake-news deixam marcas: a verdade pode vir ao de cima tarde demais para as vítimas de linchamento mediático; a credulidade e até facciosismo de alguns meios de comunicação aumentam a desconfiança; a intolerância vai grassando, ao mesmo tempo que se tenta impôr um discurso único. A Verdade é sacrificada a uma Liberdade que, afinal, não respeita os direitos e a dignidade dos outros.

O que devem fazer os media, os intelectuais, os historiadores?

Ao iniciar, cerca do ano 100 da nossa era, a redacção das Histórias, Tácito registou o alívio e a satisfação de quem podia saborear a liberdade de pensamento e expressão depois de anos de despotismo violento (I, 1). Estava, contudo, ciente de que essa “rara felicidade” não implicava que se pensasse e dissesse apenas verdades, e que os historiadores escrevessem com total objectividade. Então como agora, as fake news, por mais sugestivas, eram mais facilmente acreditadas e repetidas (Annales III, 19); e o parti-pris de alguns, por vezes afectados pela opressão do passado, pesava sobre a investigação histórica (Annales, I, 1). Por isso mesmo, embora ele próprio tivesse opiniões definidas, esforça-se por apresentar as versões e pareceres sobre os eventos, apontando a sua maior ou menor probabilidade. Sendo evidente a sua perspectiva pessimista sobre a sociedade romana e o seu futuro, sobressai a sua visão moral da realidade. Provavelmente, o que falta a muitos dos que ocupam lugares de destaque nos meios de comunicação é cultura e profundidade de pensamento sobre o Homem em todas as suas vertentes. A Liberdade não se resume à aceitação de questões fracturantes, nem a Verdade é posse exclusiva de alguém.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.