Pela promoção do diálogo inter-religioso

Oitocentos anos depois da viagem profética de São Francisco somos nós os herdeiros de uma atitude evangélica que talvez seja hoje mais necessária que nunca.

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Símbolo da viagem do papa Francisco aos Emirados Árabes Unidos

Traçada em amarelo, a linha simples desta pomba da paz faz-nos ver as cores da bandeira oficial do Vaticano. Uma pomba que, ao abrir a sua asa, integra as cores de uma outra bandeira, desta feita a dos Emirados Árabes Unidos. Trata-se do logótipo referente à visita do atual Soberano Pontífice a este país, situado no golfo pérsico. Uma visita histórica, sem dúvida, ou não seria a primeira vez que um Papa é recebido na península arábica, com toda a pompa e circunstância próprias de uma cerimónia de Estado.

O Papa respondeu positivamente ao convite que o Xeique Mohammed Bin Zayed Al Nahyan lhe endereçou depois de ter sido recebido em audiência privada no Vaticano, em 2016. Inspirado na figura de Francisco de Assis, o encontro tem por tema a célebre oração “Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz”.

A graça que se pede nesta oração contrasta com muitas das posições afincadas que tendem a caracterizar os debates nas nossas sociedades modernas cada vez mais fragmentadas. Por isso, a atitude do Papa, tal como a do Xeique Al Nahyan ou do grande Imã de Al-Azhar, pode surpreender os fiéis de ambas as religiões, porque se trata de uma atitude que funciona, num certo sentido, como uma contracultura que marca a diferença em relação à agressividade presente nos debates extremamente polarizados de hoje em relação aos quais somos por vezes tentados a responder de forma radical e simplista: num lado ou no outro; preto ou branco. O encontro dialogante parece, por vezes, ser impossível. A intersecção dos lados opostos parece nunca ter lugar, bem como o encontro harmonioso entre pessoas de diferentes credos ou de opiniões distintas.

Fiel à mais pura das tradições cristãs, o Papa Francisco abraçou o Xeique e o Imã Ahmad Al-Tayyib que o receberam em Abu Dhabi 800 anos depois do Poverello de Assis, num mundo marcado pelas cruzadas e pelas guerras religiosas, ter optado por se encontrar pacificamente com o sultão Malik Al Jamil. À violência, São Francisco preferiu o diálogo. Em vez do poder e da força mundana, o Poverello escolheu a pobreza do Evangelho. E, aos olhos do mundo, a sua missão provavelmente foi um fracasso. Afinal, mesmo depois de receber o anúncio autêntico de um dos maiores santos e evangelizadores que a Igreja jamais conheceu, o sultão permaneceu muçulmano. O episódio limita-se a espelhar, na concretude da vida, as palavras que São Francisco deixou por escrito e que o atual Soberano Pontífice gosta de referir (cf. Homilia do Santo Padre Francisco, 5 de fevereiro 2019):

“Qualquer frade que quiser ir entre sarracenos e outros infiéis, vá com a licença do seu ministro (…) os frades que vão, podem comportar-se espiritualmente (…) de dois modos. Um modo é que não façam nem litígios nem contendas, mas estejam submetidos a toda criatura humana por Deus (1Pd 2,13) e confessem que são cristãos. Outro modo é que, quando virem que agrada ao Senhor, anunciem a palavra de Deus” (Regra não-bulada, capítulo XVI).

Tal como se evocou a ida do santo de Assis ao Egito aquando do encontro, em 2007, entre Bento XVI e o Rei Abdullah, o primeiro monarca saudita a ser oficialmente recebido no Vaticano, hoje, diante de um Papa que assume o nome do Poverello e que se desloca a um país maioritariamente muçulmano no golfo pérsico, o mesmo paralelismo torna-se absolutamente inevitável. Contudo, não se trata apenas de seguir o exemplo de São Francisco, mas de pôr em prática o que o Concílio Vaticano II afirma a respeito dos muçulmanos:

“A Igreja olha (…) com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra (…) Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum. E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que (…) sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens” (Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não-cristãs, §3).

No discurso que o Papa proferiu pela ocasião de um Encontro Inter-Religioso, afirma-se que a paz, qual pomba, “para levantar voo, precisa de asas que a sustentem: as asas da educação e da justiça”. É necessário abrir estas asas para que os fundamentalismos não condicionem o nosso futuro, o futuro da família humana.

Desta forma, o Papa Francisco promove, por um lado, o diálogo com os muçulmanos e, por outro, um islão que é capaz de respeitar a alteridade cristã.

Num dos países da península arábica mais abertos e tolerantes, o Papa Francisco não se limita a mostrar como a coexistência e a construção de pontes com o islão são possíveis. O encontro inter-religioso intitulado “A Fraternidade Humana” mostra, bem mais do que isso, uma fé que “une e não divide”, que “aproxima apesar das diferenças” (Mensagem do Santo Padre por ocasião da Viagem Apostólica aos Emirados Árabes, 31 de janeiro de 2019).

Desta forma, o Papa Francisco promove, por um lado, o diálogo com os muçulmanos e, por outro, um islão que é capaz de respeitar a alteridade cristã. É importante zelar pela tolerância religiosa, sobretudo numa região onde os cristãos tendem a ser fortemente perseguidos. Para o Papa, os Emirados Árabes Unidos são um “modelo de coexistência” pacífica entre pessoas de credos diferentes. E é esse modelo que deve ser promovido, sobretudo tendo em conta o atual contexto de perseguições religiosas: só em 2018, mais de 4.300 cristãos foram assassinados devido à sua fé. Praticar a tolerância, o diálogo e o encontro traduz o combate contra o extremismo e o fundamentalismo religioso que, no fundo, é blasfematório por invocar o Santo Nome de Deus em vão. Tal como refere o Papa Francisco:

“A violência (…) em nome da religião não pode deixar de causar descrédito em relação à própria religião; como tal, deveria ser condenada por todos e com convicção especial, pelo homem autenticamente religioso, o qual sabe que Deus é unicamente bondade, amor, compaixão, e que n’Ele não pode haver espaço para o ódio, o rancor e a vingança. A pessoa religiosa sabe que uma das maiores blasfémias é chamar Deus como garante dos próprios pecados e crimes, de o chamar a justificar o homicídio, o massacre, a escravização, a exploração em todas as suas formas, a opressão e a perseguição de pessoas e de populações inteiras” (cf. Discurso do Papa Francisco aos participantes na conferência “Tackling violence committed in the name of religion”, 2 de fevereiro de 2018).

Com estas palavras sinceras, que o Papa proferiu por ocasião da sua visita à península arábica, percebemos que a atitude de diálogo não se reduz a uma simples estratégia de quem quer conquistar o mundo ou de quem procura preservar a fé do seu grupo. Mais do que uma estratégia para convencer o outro, a atitude do Papa brota de uma visão sobrenatural do Evangelho, a única visão que permite compreender e viver a cruz.

“Que o amor fraterno seja duradouro. Não esqueçais a hospitalidade, pela qual alguns, sem o saber, hospedaram anjos” (Heb 13, 1-2). Em vez de começar por querer converter quem é diferente, Francisco vive a experiência de um Deus acolhedor, um Deus que ama ao ponto de oferecer a Sua própria vida. Quem faz a experiência desse Deus vive dessa forma, acolhe o outro, e faz dele, de quem é diferente, o seu próximo. Sim, quem se encontra realmente com Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, e se torna Seu discípulo deseja o encontro gratuito com o próximo. Percebemos, assim, a atitude do Papa Francisco: trata-se, nem mais nem menos, de evangelizar ao estilo de Jesus e dos grandes santos que O seguiram. E, por mais paradoxal que isso possa parecer, não há aqui estratégia nenhuma, mesmo apesar do facto de ser essa atitude que evangeliza, transformando ou convertendo realmente o mundo, o outro e cada um de nós a Deus. Mais do que estratégia, Francisco procura viver as Bem-aventuranças do Evangelho, porque “«felizes [são] os mansos» (Mt 5, 5). Não é feliz quem agride ou subjuga, mas quem mantém o comportamento de Jesus que nos salvou: manso, mesmo diante dos seus acusadores” (Homília do Santo Padre Francisco, 5 de fevereiro 2019).

Oitocentos anos depois da viagem profética de São Francisco somos nós os herdeiros de uma atitude evangélica que talvez seja hoje mais necessária que nunca. Como disse o Papa Francisco no encontro inter-religioso diante de cerca 700 representantes de diversas confissões religiosas: “Não há alternativa: ou construímos juntos o futuro, ou não há futuro” (Discurso do Papa Francisco no Encontro Inter-religioso de 4 de fevereiro 2019).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.