Pancadinhas da campanha eleitoral

Poderá ser um país competitivo e alcançar um elevado crescimento económico com um sistema de ensino caduco, centralista, sem grande espaço para a diferença e avesso à inovação?

A campanha eleitoral, em que tanto se falou do dia 30 de janeiro, fez-me lembrar um pequeno episódio que aconteceu numa aula minha, há uns anos: um aluno que gostava de passar as aulas a chamar a atenção e a distrair os colegas passou, irritantemente, 45 minutos a dar pancadinhas sucessivas com um lápis na secretária. Barulho irritante que desafiou a minha curta paciência e que tive de ignorar durante esses longos minutos. Não tendo sido fácil resistir à tentação de o interpelar diante dos colegas, no fim da aula, já depois de todos saírem, pedi para falar com ele e expliquei-lhe que só não o tinha expulso porque acreditava que ele poderia ser melhor. Embora não tenha muito interesse para o exemplo, o que é certo é que a estratégia resultou e na aula seguinte o aluno mudou de atitude.

Ao fim de tantos debates televisivos, frente a frente ou com todos, de tantos discursos e slogans, de tantas entrevistas e ataques, de twitter’s e redes sociais, sem esquecer as famosas arruadas e feiras, tenho a impressão que o “povo português”, para usar uma expressão cara aos partidos políticos, foi tão marteladinho por temas económicos absolutizadores que ficou muito atordoado com o crescimento económico. Julgo que uma campanha eleitoral tão decisiva, pela crise pandémica e social que vivemos e pelo tão anunciado PRR, centrada excessivamente nas possíveis coligações pós-eleitorais e nas questões económicas, é muito pobre e revela as raízes profundas de uma crise que é, sobretudo, cultural.

As crises são oportunidade de recomeço e de mudança: mudança de perspetiva, de gestão e de sistema.

As crises são oportunidade de recomeço e de mudança: mudança de perspetiva, de gestão e de sistema. Por isso, numa campanha que tanto se falou do crescimento económico e da produção de riqueza, senti falta de uma referência mais explícita à educação, que, como sabemos, é um dos eixos fundamentais do desenvolvimento e do progresso de qualquer sociedade. Aparentemente, a educação, a cultura e a demografia, foram quase temas tabus, numa campanha eleitoral de frações entre esquerda e direita. Aqui e ali, pontualmente, foram discutidos o cheque de ensino, o concurso nacional de professores, a liberdade de escolha e a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Todavia, não ignorando a importância de todos estes temas, lamento que tenha estado ausente do debate político uma reflexão sobre o nosso sistema de ensino e a sua reforma. Poderá um país ser competitivo e alcançar um elevado crescimento económico com um sistema de ensino caduco, centralista, sem grande espaço para a diferença e avesso à inovação? Poderá a escola continuar a educar cidadãos de futuro, com ideias, métodos e currículos do passado?

Como dizia há dias, numa entrevista na Rádio Renascença, o Professor Luís Aguiar-Conraria, da Universidade do Minho, os países de leste ultrapassaram-nos a nível de crescimento económico porque têm sistemas educativos e níveis de ensino próximos ou até superiores do dos países mais desenvolvidos da Europa, como a Alemanha, enquanto que Portugal está aquém destes resultados. Por isso, se queremos crescer economicamente de forma estruturada e sustentada, temos necessariamente que investir na educação.

Todavia, não ignorando a importância de todos estes temas, lamento que tenha estado ausente do debate político uma reflexão sobre o nosso sistema de ensino e a sua reforma.

Nos últimos anos, assistimos a uma queda demográfica e à consequente redução do número de alunos. Com a quebra dos contratos de associação, muitas escolas de qualidade e de grande tradição educativa foram obrigadas a fechar e a despedir os seus trabalhadores. Neste momento, há cerca 30.000 alunos, em todo o país, que não têm aulas por falta de professores. Um estudo recente, sugere, ainda, que nos últimos dez anos, cerca de 10 mil professores desistiram do ensino. Prevê-se que, nos próximos anos, muitos professores se reformem. Estes são dados ausentes das campanhas populistas, que querem prometer melhores condições de vida aos portugueses, sem oferecer uma educação de qualidade e sem repensar o sistema educativo. Aliás, o vaticínio não é meu, é do Professor Joaquim de Azevedo, ex-secretário de estado da educação, que, recentemente, afirmou: “Estamos sobre um barril de pólvora, a educação tem sido esquecida pelos políticos”.

As escolas e a educação foram das áreas mais afetadas pela pandemia, porque o impacto destes anos de pandemia na educação e desenvolvimento das crianças é muito maior do que o impacto na alteração das rotinas de vida dos adultos. Tomemos como exemplo uma criança de 7 anos, que frequenta o 2.º ano do 1.º CEB. Na sua imberbe existência, quase metade da sua vida aconteceu durante a pandemia, com diminuição de contactos, com máscaras, distanciamento físico e sucessivos e prolongados confinamentos. Esta criança, pelo grande esforço da sua professora titular e por todas as condições criativamente criadas pela escola, até pode saber ler e escrever, mas o seu desenvolvimento humano e social ficou bastante afetado. É evidente que os professores são grandes heróis de resiliência e que as escolas tiveram que se reinventar. Contudo, depois de uma crise como esta, não basta fazer planos de recuperação das aprendizagens ou de digitalização do ensino, temos que corajosamente, sem preconceitos ideológico e com rigor científico, repensar a escola e o nosso sistema educativo, dando resposta aos desafios da sociedade do futuro, centrando o ensino na aquisição de competências, reciclando o currículo e capacitando os professores para novas formas de ensinar. Depois da pandemia, não podemos continuar a educar da mesma forma, com as mesmas disciplinas, com os mesmos conteúdos, com as mesmas metodologias, com as mesmas matérias. Não basta flexibilizar o currículo, é necessário reinventá-lo.

Depois da pandemia, não podemos continuar a educar da mesma forma, com as mesmas disciplinas, com os mesmos conteúdos, com as mesmas metodologias, com as mesmas matérias. Não basta flexibilizar o currículo, é necessário reinventá-lo.

A nível educativo, a pandemia implicou alguns retrocessos pedagógico e didáticos. Por exemplo, a nível da organização da sala de aula, com o distanciamento físico, e da interação entre alunos mais novos e mais velhos, que passaram a estar separados por bolhas. E com isto, uma redução das pedagogias ativas e da diferenciação pedagógica. Tornou também mais evidentes as lacunas de um sistema centralista de comando, como o do Ministério da Educação, que, como vimos, agrava as dificuldades de gestão, impedindo, em muitos casos, que as escolas públicas tivessem recursos e autonomia para dar um melhor acompanhamento aos alunos. Como não recordar a decisão inconstitucional de impor o cancelamento das atividades letivas a todas as escolas públicas e privadas, em janeiro de 2021, pondo em causa a liberdade de educação em Portugal por incapacidade do Estado ou promessa de computadores que nunca chegaram.

Todavia, a pandemia também trouxe avanços: uma maior promoção da autonomia dos alunos, um maior desenvolvimento tecnológico das estruturas pedagógicas, a valorização do papel da escola e dos professores, a exploração de novas formas de ensinar e de acompanhar os alunos, a evidência de que a escola não pode cuidar apenas das aprendizagens, mas tem que atender ao desenvolvimento integral do aluno. E tantas outras inovações, fruto do compromisso de milhares de professores e do investimento das próprias escolas, muitas vezes sem qualquer tipo de apoio governamental.

Hoje, dia 1 de fevereiro, já sabemos o resultado das eleições e a composição da nova Assembleia da República, mas o que ainda não sabemos, infelizmente, é que Portugal seremos. Temos claros, pelo pessimismo que nos caracteriza como povo, os problemas, mas continua a não ser evidente uma resposta integrada de soluções, que tirem o nosso país da pobreza e da cauda da Europa. Talvez esta incerteza seja uma oportunidade de repensar, de forma integrada, a política educativa no nosso país, abandonando soluções populistas de pensos rápidos e revalorizando a profissão (vocação) do professor. Deixemos a distração das pancadinhas da campanha eleitoral e tenhamos a coragem de repensar o nosso sistema educativo, tornando-o mais plural, menos centralista e mais flexível. Sem preconceitos ou ideologias, ousemos pensar um sistema centrado no desenvolvimento de competências transversais e em aprendizagens duradouras, que ajudem os alunos a construir um projeto de vida e a encontrar sentido para a sua existência. E, finalmente, deixemos as famílias escolher o futuro dos seus filhos e quem os educa, alargando os apoios estatais à Educação, sem qualquer tipo de discriminação, a todas as famílias e a todos os alunos portugueses.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.