Olhados por Deus

Tantas vezes Jesus olhou, viu, cruzou o seu olhar com aqueles e aquelas perante quem os outros afastavam o olhar.

Em plena fase estival, a meio de Agosto, quando, entre nós, muitos se encontram de férias, a liturgia propõe-nos um olhar sobre Maria, na solenidade da sua Assunção. Os textos litúrgicos são-nos conhecidos: a visão do Apocalipse que afirma e anuncia o triunfo definitivo de Deus e do seu Cristo perante as forças do mal, ainda que no meio de inúmeras provações, simbolizada na mulher, mais resplandecente que o sol, que dá à luz os filhos na dor e que se vê obrigada, temporariamente, a fugir para o deserto; o texto da 1ª carta aos Coríntios, que relembra como todos os que renasceram e vivem em Cristo são chamados a participar no seu triunfo e na plenitude da vitória sobre o mal e sobre a morte; e o texto de Lucas, alusivo à visitação feita por Maria e Isabel, após duas anunciações e duas conceções miraculosas – as de João Baptista e a de Jesus.

O texto de Lucas foi, como todos saberão, a base para o tema da última Jornada Mundial da Juventude, a partir do versículo que liga a Anunciação e a Visitação: “Maria partiu apressadamente”. Ouvimos todos como esta pressa solícita de Maria nasce da alegria da missão que lhe foi dada e desse desejo de se fazer próxima da prima que, na sua velhice, se vê agraciada com uma inesperada mas muito desejada gravidez. Ela é sinal dessa agilidade própria de quem ama, tal como o Cântico dos Cânticos tão belamente expressa, ao comparar os amantes a ágeis gazelas. Santa Teresa de Ávila viria a dizê-lo de forma similar: “A Alma que anda no amor, nem cansa nem se cansa”.

Ouvimos todos como esta pressa solícita de Maria nasce da alegria da missão que lhe foi dada e desse desejo de se fazer próxima da prima que, na sua velhice, se vê agraciada com uma inesperada mas muito desejada gravidez.

O encontro das duas mulheres é uma explosão de alegria e de gratidão, perante a abundância do dom de Deus e do mistério que nelas e por elas se preparava para a definitiva revelação: Maria transportava em si o Senhor de Isabel e seu Senhor, e Isabel trazia no ventre a voz que haveria de clamar, no deserto, a proximidade da vinda do Ungido de Deus, o Messias. Aquele que Jesus haveria de proclamar como o maior entre os filhos dos homens.

Nesse relato, a gratidão e o louvor transformam-se em hino, em poesia, de modo a poder dizer tudo aquilo que estava a acontecer. Maria será a cantora desse hino, onde reconhece as maravilhas que Deus fez nela, em fidelidade às suas promessas e ao modo como misteriosamente subverte as lógicas humanas e de poder para levar a História à sua plena consumação. O modo como Maria o diz é particularmente tocante, pois ela coloca-se entre os pobres de Javé, aqueles que também Jesus colocará entre os bem-aventurados e que, na longa tradição do Antigo Testamento, são os mais amados de Deus. As orações do antigo povo de Israel dão-lhes voz e fazem deles o paradigma do orante que reconhece a sua pequenez, o seu sofrimento, a sua procura de sentido e de plenitude. Deus sempre atende o pobre: escuta a sua voz, retira-o do pó do chão, é sensível ao seu poderoso clamor que atravessa os céus. No belíssimo salmo 122 (123), o orante equipara-se ao pobre, ao escravo, ao servo, que, de baixo, na sua pequenez, olha para Deus, esperando dele a graça de ultrapassar o opróbrio que o atinge: o seu olhar fixa-se nas mãos de Deus como os olhos do servo se fixam nas mãos do seu senhor. Linguagem poderosa, de súplica confiante, sem máscaras, capaz de dizer perante Deus o seu sofrimento e a necessidade do seu dom.

No belíssimo salmo 122 (123), o orante equipara-se ao pobre, ao escravo, ao servo, que, de baixo, na sua pequenez, olha para Deus, esperando dele a graça de ultrapassar o opróbrio que o atinge: o seu olhar fixa-se nas mãos de Deus como os olhos do servo se fixam nas mãos do seu senhor.

Maria também reconhece a sua pequenez, a sua condição humilde, como uma serva, uma pobre serva. Mas de imediato reconhece também como foi sobre a sua pequenez, a sua insuficiência e incompletude que recaiu o olhar de Deus: “porque pôs os olhos na humildade da sua serva”. E esse olhar mudou tudo. E esse olhar muda tudo. Maria di-lo, sem qualquer timidez ou vergonha: é da experiência desse olhar que acontecem maravilhas e se podem subverter as lógicas de poder instaladas. Com efeito, os pobres são saciados e os ricos despedidos de mãos vazias; os humildes são exaltados e os poderosos e os soberbos deixados sem trono e dispersos na vanidade das suas pretensões, porque cheios de si mesmos.

Este olhar encontra-se repetido no relato de Lucas, fazendo eco nos olhares atentos, gratos, generosos, de Maria e de Isabel que, por se sentirem olhadas com amor, cheias da benevolência e da misericórdia de Deus, são capazes de discernir o dom que cada uma transporta e alegrar-se com isso: mal viu a sua prima, Isabel exulta de alegria; sentindo-se reconhecida e acolhida, Maria canta o dom de Deus que nela opera maravilhas, num amor fiel, que atravessa as gerações.

Jesus será, por excelência, o revelador deste olhar de misericórdia e de compaixão. Um olhar divino, que ama antes e para além de méritos e deméritos, capaz de resgatar a verdade de cada um e que, mesmo em percursos de vida difíceis, reconhece a presença do dom de Deus, o valor de cada homem e de cada mulher, as potencialidades que lhes podem permitem um caminho de plenitude e de vida. Os relatos evangélicos acentuam a presença deste olhar: sobre a mulher adúltera, sobre Zaqueu, cobre Mateus, o cobrador de impostos, sobre a multidão que o procura, como rebanho sem pastor, sobre o ladrão que o acompanha no momento derradeiro da sua entrega… Tantas vezes Jesus, olhou, viu, cruzou o seu olhar com aqueles e aquelas perante quem os outros afastavam o olhar.

Um olhar divino, que ama antes e para além de méritos e deméritos, capaz de resgatar a verdade de cada um e que, mesmo em percursos de vida difíceis, reconhece a presença do dom de Deus, o valor de cada homem e de cada mulher, as potencialidades que lhes podem permitem um caminho de plenitude e de vida.

O texto de Lucas convida-nos, assim, e com ele os muitos relatos de encontros de Jesus com os homens e mulheres do seu tempo, a reconhecermos ou a redescobrirmos este olhar de misericórdia, de ternura, de confiança, de amor, que Deus lança sobre cada um, sobre cada uma de nós. Em tempo de férias, muitas vezes revisitamos a nossa vida, o nosso percurso, com as suas alegrias e também as suas dores. Trazemos dentro outros olhares que se calhar não foram de amor e de bondade mas de julgamento, de severidade, de uma afeição que exige provas, e que, no fundo, nos diz que não chegamos, não somos suficientemente bons, que não temos importância. Maria relembra-nos que Deus nos ama primeiro, que o seu olhar de amor é fiel, sempre pronto a dar-se, ao ponto de, mesmo quando o coração nos acusa, nos poder dizer: “Eu sou maior do que o teu coração. Eu estou aqui para curar as tuas feridas, acolher as tuas lágrimas, segredar-te no mais fundo de ti mesmo, face a outras vozes mentirosas, que tu és precioso a Meus olhos, que Te amo com um amor eterno”.

Há de ser a partir desta experiência que, como Maria, poderemos partir apressadamente. Para levar aos outros a certeza de que também eles importam, que também eles são amados, que também a eles Deus deseja cobrir de graça e misericórdia, que também neles e na sua História Deus pode e quer fazer maravilhas. A certeza de que, em suma, os novos céus e a nova terra que nos são prometidos são possíveis. Mas só a partir de olhares incendiados, de quem se descobriu amado e por isso importante, pode nascer uma verdadeira transformação do mundo. Olhares simples, puros, transparentes, capazes de reconhecer o dom único que cada um e cada uma transportam, capazes também de ver mais longe e confiar que Aquele que nos ama primeiro é o que tem a última palavra. E esta será sempre uma palavra de vida, um sim que permanece para sempre.

Boas férias!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.