O ano letivo que começa: quatro ideias

Non multa, sed multum é uma lição simples para as escolas, concretizando o equilíbrio entre hard skills e soft skills que os empregadores desejam encontrar nos seus trabalhadores.

O The Future of Jobs Report [1] é um documento cuja leitura considero realmente importante para os agentes que se dedicam à reflexão sobre o devir das escolas e da educação. Sucedendo aos relatórios de 2016, 2018 e 2020, o quarto The Future of Jobs Report foi publicado pelo Fórum Económico Mundial no passado mês de maio, e, tal como os seus antecessores, apresenta uma análise de diferentes aspetos relacionados com as direções e as tendências da empregabilidade, tendo por base os resultados de um questionário a que responderam responsáveis de 803 empresas, de 27 sectores diferentes, integradas em 45 economias espalhadas por todo o mundo. Das suas quase 300 páginas, encontro particular interesse naquelas em que são discutidas as competências que, na perspetiva dos empregadores, os trabalhadores devem ter mais desenvolvidas, pela razão evidente de que este aspeto é um indicador relevante para a definição dos planos curriculares do ensino formal, contribuindo para que as escolas possam encontrar um equilíbrio entre “o que são e querem ser” e “o que têm de ser e se espera que sejam”.

Das suas quase 300 páginas, encontro particular interesse naquelas em que são discutidas as competências que, na perspetiva dos empregadores, os trabalhadores devem ter mais desenvolvidas, pela razão evidente de que este aspeto é um indicador relevante para a definição dos planos curriculares do ensino formal, contribuindo para que as escolas possam encontrar um equilíbrio entre “o que são e querem ser” e “o que têm de ser e se espera que sejam”.

No relatório sobre o futuro dos empregos, não encontramos apenas um ranking de competências, mas, na verdade, três rankings, presumivelmente resultantes das respostas a três perguntas distintas, cuja formulação intuo que terá sido próxima da seguinte: 1. Quais as competências que considera essenciais para os seus trabalhadores na atualidade? 2. Quais as competências cuja importância irá aumentar nos próximos 5 anos? 3. Quais as prioridades estratégicas de requalificação e melhoria de competências dos seus trabalhadores atuais? Porque não têm importância para esta reflexão as especificidades de cada ranking, se cruzarmos o top 10 de cada um deles, encontramos evidentes similitudes que facilitam a elaboração de um ranking único, o qual traduziria a importância que, genericamente, é dada às diferentes competências na atualidade. Se juntarmos as seis competências em que os top 10 dos três rankings coincidem (ainda que em lugares distintos) com as competências que surgem em pelo menos dois deles, obtemos uma lista de nove competências, que podem ser ordenadas do seguinte modo (indicamos entre parêntesis a categoria que o documento atribui a cada competência):

 

1.º pensamento analítico (conhecimentos e capacidades)

2.º pensamento criativo (conhecimentos e capacidades)

3.º resiliência, flexibilidade e adaptabilidade (atitudes e valores)

4.º curiosidade e aprendizagem ao longo da vida (atitudes e valores)

5.º literacia tecnológica (conhecimentos e capacidades)

6.º motivação e autoconhecimento (atitudes e valores)

7.º inteligência artificial e análise de dados (conhecimentos e capacidades)

8.º liderança e influência social (atitudes e valores)

9.º empatia e escuta ativa (atitudes e valores).

Assumindo o risco de estar a simplificar excessivamente a complexidade do relatório e a ignorar variáveis significativas para a leitura da lista das competências mais importantes, partilho quatro reflexões sobre o modo como esta perspetiva dos empregadores pode ajudar a compreender (e a iluminar) o ano letivo que acaba de começar.

 

Equilíbrio

Tendo por base a distinção que o Fórum Económico Mundial faz entre a categoria dos «conhecimentos e capacidades» e a categoria das «atitudes e valores», verificamos que é dada pelos empregadores importância equivalente às competências que pertencem tanto a uma como à outra categorias. Portanto, se é verdade que encontramos nesta lista o reflexo da importância que tem vindo a ser dada às chamadas soft skills no mercado de trabalho, não é menos verdade que este tipo de habilidades não se tornou mais importante que as chamadas hard skills, como alguns autores vaticinaram.

Nas escolas, continua a predominar o trabalho, pelo menos de forma mais explícita, sobre os conhecimentos e as capacidades, em detrimento do trabalho sobre atitudes e valores. Isto acontece porque, em primeiro lugar, a formação base que os professores receberam incidiu sobre conhecimentos científicos e pedagógicos associados a uma determinada área disciplinar, pelo que são esses conhecimentos e capacidades que os professores se sentem habilitados a transmitir. Em segundo lugar, em parte como consequência do motivo apresentado anteriormente, é mais fácil construir atividades para desenvolver conhecimentos e capacidades e classificar o desempenho a elas associado do que promover atividades sobre atitudes e comportamentos e classificar o desempenho dos alunos nesse âmbito, sobretudo porque é expectável que essa classificação seja numérica. Em terceiro lugar, predomina o trabalho sobre conhecimentos e capacidades porque se associam, de maneira mais explícita ou menos explícita, as atitudes e valores à personalidade dos alunos, aqui entendida como uma dimensão psicossocial inalterável. Finalmente, em quarto lugar, o domínio dos conhecimentos e capacidades explica-se porque os exames nacionais, que determinam tanto a entrada na universidade como o prestígio público de uma escola, incidem sobre… conhecimentos e capacidades. Não se poderá mudar tudo isto de uma só vez, nem se poderá esperar que estas realidades mudem rapidamente, mas termos presente que aquilo que se espera dos alunos no futuro é uma formação equilibrada contribui seguramente para olharmos a planificação curricular a partir de um ângulo mais amplo e para refletir sobre os passos que podem ser dados para caminharmos em direção a um maior equilíbrio entre as duas categorias de competências.

Nas escolas, continua a predominar o trabalho, pelo menos de forma mais explícita, sobre os conhecimentos e as capacidades, em detrimento do trabalho sobre atitudes e valores. Isto acontece porque, em primeiro lugar, a formação base que os professores receberam incidiu sobre conhecimentos científicos e pedagógicos associados a uma determinada área disciplinar, pelo que são esses conhecimentos e capacidades que os professores se sentem habilitados a transmitir.

No parágrafo 163 das Características da Educação da Companhia de Jesus, podemos ler que «Não é a quantidade de matéria aprendida o mais importante, mas antes uma formação sólida profunda e básica (Non multa, sed multum)». A «quantidade de matéria aprendida» diz respeito apenas aos conhecimentos e capacidades, a solidez e a profundidade das aprendizagens podem ser alcançadas com o trabalho sobre os valores e as atitudes. Non multa, sed multum é uma lição simples para as escolas, concretizando o equilíbrio entre hard skills e soft skills que os empregadores desejam encontrar nos seus trabalhadores.

A «quantidade de matéria aprendida» diz respeito apenas aos conhecimentos e capacidades, a solidez e a profundidade das aprendizagens podem ser alcançadas com o trabalho sobre os valores e as atitudes. Non multa, sed multum é uma lição simples para as escolas, concretizando o equilíbrio entre hard skills e soft skills que os empregadores desejam encontrar nos seus trabalhadores.

Inteligência artificial

O Chat GPT é por estes dias o serviço de inteligência artificial mais conhecido, antevendo-se que venha a ter um impacto significativo nas escolas e universidades. Os receios dos professores relativamente ao uso que os seus alunos poderão fazer desta ferramenta passam, claro, pela facilidade com que ela poderá pôr em causa a justiça da avaliação, mas, sobretudo, pelo facto de o uso da ferramenta poder prejudicar seriamente o desenvolvimento das duas competências que ocupam os dois primeiros lugares do nosso ranking. Não precisamos de visões futuristas para perceber que utilizar determinadas tecnologias faz definhar as capacidades humanas que, com esses recursos, deixamos de mobilizar. O uso generalizado do GPS, por exemplo, diminuiu a nossa capacidade de nos orientarmos no espaço, de seguir indicações, de ler mapas e de memorizar percursos. É claro que o GPS é útil para calcular percursos que nos permitem evitar o trânsito, mas essa é uma capacidade que assenta na análise de dados que são necessariamente fornecidos pela tecnologia. Ou seja, nesse caso, o GPS não substitui nenhuma capacidade natural em nós, o que acaba por ser um bom exemplo do que é um uso equilibrado da tecnologia. Mas, quando recorremos repetidamente ao GPS, estamos a promover a diminuição das capacidades que o GPS substitui.

Não precisamos de visões futuristas para perceber que utilizar determinadas tecnologias faz definhar as capacidades humanas que, com esses recursos, deixamos de mobilizar.

Voltando ao Chat GPT, é uma ferramenta sobretudo hábil na produção de textos, e, por isso, poderemos pensar que afetará apenas o nosso pensamento criativo para fazer poemas ou o nosso pensamento crítico para analisar textos, mas é bom lembrar que a competência é transversal, ou seja, no sentido em que o Fórum Económico Mundial os utiliza, os conceitos de pensamento analítico e pensamento criativo não estão associados a uma área específica do saber [2]. Nestas circunstâncias, recorrer à inteligência artificial é como ter de cumprir um plano de treino físico e programar uma passadeira para fazer 10 quilómetros sozinha, carregando depois o treino para a aplicação que partilhamos com o nosso treinador, o qual, por sua vez, certifica a conclusão de mais um objetivo. O Chat GPT é, sem sombra de dúvidas, uma ferramenta que devemos conhecer e explorar do ponto de vista educativo, mas é necessário recorrer precisamente ao pensamento analítico e ao pensamento criativo para a usarmos e ensinarmos a usar da forma correta, equilibrada, não caindo no erro de considerar que, porque a inteligência artificial é uma das competências mais valorizadas pelos empregadores, devemos promover o seu treino, pois aquilo que os empregadores entendem por esta competência é a capacidade de programar inteligência artificial e não de a usar.

Os próximos tempos serão profícuos na produção de reflexão sobre as ferramentas generativas que recorrem à inteligência artificial, que acompanharão a evolução da própria tecnologia. Apesar de desconhecermos o que ainda está para vir, julgo que o essencial sobre o tema das ferramentas generativas pode ser encontrado no diálogo que Bartolomeu de Gusmão e Domenico Scarlatti, duas personagens do Memorial do Convento, têm na Capela Real, um dia antes de o primeiro dar a conhecer ao segundo a máquina de voar. Mesmo sendo as suas obras tão diferentes, tanto o padre como o músico sabem claramente que não há obras sem mãos e que nas obras encontramos sempre as mãos que as criam.

Digitalização do ensino

Com o que se está a passar na Suécia e, de maneira menos evidente, noutros países, incluindo Portugal, há sinais de que se começa a corrigir a forma atabalhoada como se tentou digitalizar o ensino, mas é importante voltar ao tema para esclarecer  que os alunos que possam não estar a usar frenética e animadamente um iPad nas aulas não estão a perder tempo nem a ficar para trás no que diz respeito ao desenvolvimento das competências «literacia tecnológica» e «inteligência artificial e análise de dados». É evidente que usar dispositivos digitais não piora o domínio destas competências, mas tenho dúvidas de que as aplicações educativas mais usadas pelos alunos melhorem esse domínio, pelo menos no sentido em que é significativo para os empregadores, para quem a literacia tecnológica é a capacidade de «usar tecnologias que auxiliam na produção industrial e nos processos de manufaturação» e de «instalar equipamentos, máquinas, cabos ou programas». Em sentido diferente, se a digitalização do ensino servir para treinar os alunos para usarem ferramentas que aumentam a produtividade e a eficácia, como os processadores de texto e as folhas de cálculo, então, sim, estaremos a ir ao encontro da literacia tecnológica valorizada pelos empresários consultados, que também a entendem no sentido de «usar software desenhado para ajudar a realizar o trabalho com mais rapidez e eficiência».

Também aqui a medida justa há de ser a do equilíbrio, porque, com as notícias que nos chegam da Suécia, corremos o risco de, uma vez mais, imitar o estrangeiro pelo exagero e banir, erradamente, toda a tecnologia da escola. Não espantaria que isso acontecesse, porque, como escreve Pessoa, «é do português, pai de amplos mares,/ Querer, poder só isto:/ O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —/ O todo, ou o seu nada».

Também aqui a medida justa há de ser a do equilíbrio, porque, com as notícias que nos chegam da Suécia, corremos o risco de, uma vez mais, imitar o estrangeiro pelo exagero e banir, erradamente, toda a tecnologia da escola. Não espantaria que isso acontecesse, porque, como escreve Pessoa, «é do português, pai de amplos mares,/ Querer, poder só isto:/ O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —/ O todo, ou o seu nada».

Soft skills

Como já tive oportunidade de comentar noutro texto [3], o contexto em que as crianças e jovens vivem pode tornar-se pouco propício ao desenvolvimento de soft skills. Tal como acontece com outras capacidades, a resiliência, a flexibilidade, a adaptabilidade, a motivação, o autoconhecimento, a empatia e a escuta ativa apenas se desenvolvem com treino. Ora, não é possível desenvolver a resiliência se não tivermos de lidar com problemas dos quais temos de recuperar; não podemos treinar a flexibilidade e a adaptabilidade se não lidarmos com contextos que contrariem aquilo de que estávamos à espera ou que desejaríamos; só podemos desenvolver verdadeiramente a motivação se não entregarmos a responsabilidade da nossa motivação a outras pessoas, nomeadamente aos professores; só podemos desenvolver o autoconhecimento se tivermos oportunidades de silêncio, de reflexão, sem o ruído, por vezes literal, da tecnologia; e a empatia e a escuta ativa só se desenvolvem se lidarmos com o outro, se lidarmos com o diferente. Não quero dizer com isto que a escola deve procurar formas de levantar obstáculos aos alunos, ainda que a vida os vá colocar quase de certeza diante desse tipo de adversidade. O que quero dizer é que a escola não deve evitar aqueles obstáculos que surgem naturalmente, mas sim ajudar os alunos a desenvolver competências que permitam lidar autonomamente com as dificuldades e ultrapassá-las. Aumenta a importância do trabalho sobre atitudes e valores o facto de contribuir para a saúde mental dos jovens. Se os educadores dominarem, por exemplo, os conceitos básicos da terapia cognitiva, poderão acompanhar de modo mais eficaz os seus alunos, ajudando-os a desenvolver as soft skills que os empregadores tanto valorizam, ao mesmo tempo que lhes dão ferramentas para que possam gerir os estados de ansiedade e depressão de que tantas vezes os jovens se veem reféns.

Se os educadores dominarem, por exemplo, os conceitos básicos da terapia cognitiva, poderão acompanhar de modo mais eficaz os seus alunos, ajudando-os a desenvolver as soft skills que os empregadores tanto valorizam, ao mesmo tempo que lhes dão ferramentas para que possam gerir os estados de ansiedade e depressão de que tantas vezes os jovens se veem reféns.

Não me ocorre nenhuma referência literária para ilustrar a luz que tiramos da presença destas habilidades pessoais e sociais no ranking, mas a proverbial sabedoria popular deixa-nos um ensinamento que, mesmo sendo mais fácil de dizer do que de cumprir, me pode ajudar: «Prepara a criança para o caminho e não o caminho para a criança». Preparar crianças exige mais, muito mais, do que um bom conhecimento científico de uma determinada disciplina.

 

Referências:

[1] https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs-report-2023/

[2] Pensamento analítico: capacidade de decompor conceitos e ideias complexas em princípios básicos ou fundamentais. Inclui o pensamento crítico, em que os julgamentos são feitos através da análise e interpretação de factos e informações.

Pensamento criativo: capacidade de trazer à existência uma nova ideia ou conceito através da imaginação e de imaginar algo que não existe.

[3] https://pontosj.pt/opiniao/o-labirinto-das-soft-skills/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.