“Nobel da teologia” 2019: Ser cristão num mundo em mudança

A atribuição deste prémio promove uma evangelização segundo a qual a transmissão da fé não se confunde com as colonizações do passado. Trata-se de uma evangelização que brota da vida concreta das pessoas na sua relação com Deus.

Tendo atingido a sua 9.ª edição, o Prémio Ratzinger deste ano (também conhecido por “Nobel da teologia”) foi atribuído a Charles Taylor e a Paul Béré. De um lado, um filósofo cuja obra nos faz refletir sobre a possibilidade de se expressar a fé nas sociedades secularizadas do ocidente contemporâneo. Do outro, um teólogo cuja reflexão tem contribuído no desenvolvimento de uma teologia especificamente africana.

Se o primeiro nos estimula a pensar sobre como poderemos viver a fé em contextos cada vez mais plurais e secularizados, o segundo esforça-se por encontrar novas maneiras de inculturar o Evangelho em África. Desta forma,como afirmou Federico Lombardi, presidente do Conselho de Administração da Fundação Vaticana Joseph Ratzinger a quem incumbe a atribuição do prémio, percebemos que “se desejou privilegiar a filosofia na sua reflexão sobre a fé no mundo contemporâneo.”

Para uma reflexão teológica que se quer atual e, sobretudo, para os cristãos que habitam neste mundo moderno, a importância de um autor como Charles Taylor reside na descrição minuciosa que ele propõe da secularização como fenómeno extremamente complexo, sem retorno, e ainda em curso. Através de Sources of the Self (Harvard University Press, 1989) e, sobretudo, de A Secular Age (Harvard University Press, 2007), Charles Taylor mostra-nos como a secularização não se reduz ao declínio da prática religiosa, nem ao decréscimo do número de fiéis ligados a uma determinada instituição eclesial.

Contrariamente às previsões positivistas dos séculos passados, mesmo em sociedades profundamente secularizadas, o fenómeno religioso não vai, portanto, desaparecer.

Em sociedades cada vez mais multifacetadas como as nossas, deixa de ser possível que uma instituição religiosa, uma só igreja, exerça,desde cima, a sua hegemonia sobre as diferentes pessoas que compõem o tecido social. Diferentes opções, sejam elas religiosas ou políticas, coabitam cada vez mais um mesmo espaço que se quer livre, democrático e respeitador da vida de cada um. Esta nova sensibilidade, própria dos filhos deste tempo, não se traduz automaticamente num total desvanecer da dimensão religiosa. O que ela exige é a autenticidade do ato de fé. No contexto de um universo secularizado, só um cristianismo autêntico será possível. Por outras palavras, só poderá habitar a era secular um cristão cuja adesão a uma igreja ou a uma espiritualidade não venha de cima, mas antes brote do seu coração e o realize enquanto pessoa.

Contrariamente às previsões positivistas dos séculos passados, mesmo em sociedades profundamente secularizadas, o fenómeno religioso não vai, portanto, desaparecer. Mais do que um apagar absoluto, parece operar-se uma transformação da forma a partir da qual a religiosidade se manifesta. Assim, mesmo ao interior do cristianismo, em geral, e da Igreja, em particular, será natural que apareçam novas espiritualidades,novas sensibilidades litúrgicas e, consequentemente, novas comunidades onde a fé se tornará possível para cada um de nós. O desafio será o de saber alimentar a unidade necessária à comunhão entre pessoas de sensibilidades diferentes.

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P. Paul Béré, sj, teólogo e o filósofo Charles Taylor

Quanto a Paul Béré, natural da Costa do Marfim, sabemos que se doutorou com um trabalho em torno da figura bíblica de Josué no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma. Sendo o primeiro africano a receber o Prémio Ratzinger, este jesuíta exerce atualmente a função de consultor do Conselho Pontifício para a Cultura (para além da sua atividade de docente). Nos últimos anos, tem se dedicado à causa de um cristianismo respeitador da particularidade das culturas africanas (cf. Nouvelles jalons pour une théologie africaine, L’Harmattan, 2018).

Vislumbra-se, assim, o horizonte de um cristianismo plural e de uma Igreja que se constrói através da comunhão entre pessoas distintas, nas suas múltiplas formas de viver a fé. É já no próximo dia 9 de novembro que,diretamente das mãos do Santo Padre, os dois autores irão receber o prémio. A meu ver, a atribuição deste prémio promove uma evangelização segundo a qual a transmissão da fé não se confunde com as colonizações do passado. Pelo contrário, trata-se de uma evangelização que brota da vida concreta das pessoas na sua relação com Deus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.