Histórias da Escola: Se esta rua fosse minha – parte IV

"Para que serve este conhecimento?" Já muitos professores terão ouvido esta questão. A história deste projeto inspira-nos a criar condições para que os alunos compreendam o sentido das aprendizagens, relacionando-as com a sua vida.

Muitas vezes ouvi aquela frase “ainda te vai fazer falta”, dita pelos professores quando me apanhavam distraída ou desinteressada. Essa visão do futuro concretizou-se muito tempo depois, ou seja, encontrei a razão para o uso de alguns conhecimentos que devia ter adquirido no passado. Mas outros ficaram perdidos na memória, justificando a sua inutilidade na minha vida, apesar do esforço que fiz para os aprender. Não os devia ter aprendido? Não sei. Fui estudante num tempo em que era necessário recorrer aos livros e às pessoas, especialmente aos professores, para aceder ao saber e reconheço que os conhecimentos têm valor só por si e, ainda mais, quando os relacionamos com outros, aumentando a sua complexidade mas também a globalidade do seu interesse. Por isso, não sei se o conhecimento a que tive a oportunidade de aceder se transformou em conhecimento inútil e, provavelmente pela falta de uso, tornou-se em conhecimento inexistente, esquecido…

A utilidade do conhecimento académico, no ensino básico, sempre foi uma grande preocupação para mim, como estudante e como profissional. Para que serve este conhecimento? Porque estou eu a aprender este assunto? São questões que me têm acompanhado ao longo da vida. Daí a minha preocupação, enquanto professora, de criar condições para que os alunos compreendam o sentido das aprendizagens, relacionando-as com a sua vida, os seus interesses, as problemáticas que pretendem resolver.

Também me tenho preocupado com o envolvimento dos estudantes em exercícios de aprendizagem que estimulam o pensamento crítico, criativo e estratégico; o gosto por pensar e debater ideias; saberem justificar a sua opinião e aprenderem a comunicar aos outros o aprendido e o vivido, as dúvidas, os medos, as tristezas e as incertezas, as possíveis soluções, os caminhos alternativos e as descobertas que se vão fazendo ao longo do caminho, a sós ou com o outro.

Estas duas dimensões, o uso das aprendizagens na interpretação do mundo e na construção das ações que o melhorem (mesmo que seja apenas ao nível da sua vida, da sua casa, da sua rua) e o gosto por desenvolver o pensamento, sustentam o envolvimento dos alunos no trabalho escolar.

Também me tenho preocupado com o envolvimento dos estudantes em exercícios de aprendizagem que estimulam o pensamento crítico, criativo e estratégico; o gosto por pensar e debater ideias.

No projeto “se esta rua fosse minha”, além de estarem presentes as duas dimensões referidas anteriormente, todas as disciplinas do currículo, embora com diferentes graus de envolvimento, se articulam entre si na interpretação dos problemas e na procura de possíveis soluções. Os alunos tiveram de aceder a conhecimentos específicos de cada disciplina, alguns que já possuíam mas precisavam de ser aprofundados, outros que foram explorados especificamente para o projeto, muitas vezes de forma integrada. A centralidade da cidadania como eixo que permite a observação, a interpretação, o debate e a transformação das ideias e das ações foi essencial para colocar o projeto como centro dos interesses dos alunos. Permitiu ainda descobrir temáticas que teriam de ser exploradas para que a relação destas crianças com a sua comunidade não se situasse na indiferença. O texto de hoje é sobre as ideias que acabei de expressar, tornando visível o desenvolvimento da capacidade de não se ser indiferente.

Numa das visitas de estudo à rua onde moravam alguns colegas vimo-nos no interior de um bairro social: prédios altos, pintados de branco, cinco ou seis andares, muita roupa pendurada em estendais. Encontravam-se pequenos espaços que deveriam estar ajardinados mas tinham ervas altas ou mesmo terra nua. Num desses espaços estava uma palmeira derrubada e um homem a limpar os seus restos. Aproveitámos para falar com ele e soubemos que era residente num dos prédios e que tinha resolvido tirar a palmeira porque tinha morrido com um ataque de escaravelho vermelho para, depois, poder tratar do jardim. Os telemóveis começaram logo a fotografar e a filmar os escaravelhos que ainda se encontravam na palmeira e a destruição deixada. Dali saiu logo a proposta de pesquisar sobre essa doença e as formas de a prevenir. O residente do bairro, satisfeito com a atenção das crianças e reconhecendo alguns como vizinhos, falou sobre a degradação de alguns prédios, dos poucos espaços de convívio, da falta de manutenção. Mostrou as paredes todas marcadas com tinta de grafitti, o que deu lugar a uma discussão sobre o que era o grafitti, se aquelas palavras rabiscadas ou os desenhos muito mal feitos poderiam ser considerados arte. Propuseram levar o debate até às aulas de educação visual, o que gerou, mais tarde, o estudo de alguns artistas que tinham as suas obras em muros e fachadas.

Toda a animação arrefeceu quando chegaram ao prédio onde vivia um dos colegas da turma, talvez o mais degradado do bairro.

Toda a animação arrefeceu quando chegaram ao prédio onde vivia um dos colegas da turma, talvez o mais degradado do bairro: vidros partidos, paredes esburacadas, a porta principal presa com tábuas, lixo acumulado na entrada, tinta muito suja, já mal se percebendo se tinha sido branca. Foi um choque. Quiseram saber porque estava assim o prédio. O colega disse-lhes que naquele prédio, os moradores não conseguiam reunir o dinheiro necessário para a manutenção. Que os prédios que tinham melhor aspeto correspondiam a pessoas com maiores rendimentos que podiam fazer melhorias periodicamente. Ali não. Ninguém os tinha ajudado, apesar dos pedidos.

Do outro lado do bairro social existe um bairro com condições completamente diferentes: escadas em granito polido, espaços próprios para colocar os resíduos domésticos, rampas para deficientes motores, jardins cuidados, muito floridos. Novamente, tudo foi fotografado e foram feitos os registos julgados pertinentes por cada grupo.

Quando os alunos voltaram para a sala de aula organizaram os dados e escreveram os seus relatórios de acordo com as questões do projeto: A rua é promotora da saúde? Há qualidade ambiental na rua? A rua é amiga das crianças? Como melhorar o ambiente da rua? Os relatórios foram enriquecidos com as fotos dos locais que justificavam as opiniões do grupo, com a pesquisa sobre a infestação das palmeiras com o escaravelho vermelho e os seus projetos de grafiti para algumas das paredes dos prédios a precisarem de pintura. Como se poderá perceber os relatórios foram construídos nas aulas de diferentes disciplinas como Português, Ciências Naturais, Educação Visual e Cidadania e em todas elas foram definidas as aprendizagens essenciais a realizar e a confirmar.

Quando os grupos apresentaram os seus trabalhos realçaram as diferenças entre os dois bairros e formularam questões para as quais não tinham conseguido obter respostas seguras: Porque é que no bairro social não há rampas para os deficientes motores e no outro há? Porque é que os locais para depositar o lixo, no bairro social, estão estragados e no outro bairro, não? Porque é que no bairro social os jardins não estão tratados, nem as casas pintadas? Posso afirmar que o debate foi muito interessante e que levantou questões de difícil resposta mas levou a uma proposta unânime: vamos pintar o prédio do nosso colega!

Não sabemos se “vamos pintar um prédio” no âmbito do projeto “se esta rua fosse minha” foi crucial mas a câmara já iniciou o melhoramento das fachadas das casas.

Apresentaram a proposta aos professores que se dividiram entre o possível e o impossível na concretização da ação. A professora de Matemática resolveu o impasse: vamos fazer os cálculos para saber quanto custa pintar o prédio e depois decide-se se temos a possibilidade de o fazer, ou não. Os estudantes aceitaram e fizeram o levantamento do conhecimento matemático necessário para calcular a área a pintar. Numa nova visita fizeram esboços do prédio, apontaram as suas medidas e as estimativas, calcularam áreas. Os moradores acompanharam a atividade da turma pelas janelas e até ajudaram a medir alguns espaços dando sugestões sobre os materiais necessários, os rolos, o tipo de pincéis, as espátulas. O trabalho seguinte foi a pesquisa de preços nas lojas online de materiais de construção e tutoriais sobre a pintura exterior de fachadas. Mais uma vez o trabalho foi realizado em aulas de diferentes disciplinas, com maior incidência nas de matemática e contámos ainda com o apoio dos alunos do mestrado de matemática e ciências.

No final, já com os orçamentos feitos para a aquisição dos materiais, perceberam que não podiam ser eles a pintar o prédio. A ideia inicial, romântica, foi confrontada com a perigosidade das tarefas envolvidas, como montar andaimes, subirem-nos e pintarem paredes da altura do quinto andar. Foi notória a importância que passaram a dar à profissão de pintor, até ali considerada como fácil, sem complexidade.

Não desistiram e prepararam a apresentação do projeto para ser divulgada na junta de freguesia.

Não sabemos se a iniciativa “vamos pintar um prédio” no âmbito do projeto “se esta rua fosse minha” foi crucial mas a câmara já iniciou o melhoramento das fachadas das casas. Diz-se, que já havia um plano aprovado… Será verdade? Talvez, mas os alunos sentem que um pouco dessa medida foi da sua responsabilidade só porque não ficaram indiferentes às condições em que vivia um colega e a sua família.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.