Esperança no professor na voz inconformada de Nuccio Ordine

A mensagem de esperança que Ordine deixou como legado não se traduz em espera e ainda menos em inacção; traduz-se, bem pelo contrário, numa empenhada busca, de feição ética, por sermos bons professores e bons formadores de professores.

“Será preciso lutar muito nos próximos anos para salvar dessa deriva utilitarista não somente a ciência, a escola e a universidade, mas também tudo o que chamamos cultura. Será preciso resistir à dissolução programada do ensino, da pesquisa científica, dos clássicos e dos bens culturais, porque sabotar a cultura e a educação significa sabotar o futuro da humanidade”. Nuccio Ordine, 2016, 147.

As palavras que abrem este texto são de um reconhecido especialista do Renascimento, professor de Literatura italiana na Universidade da Calábria e em universidades europeias e americanas, autor de vasta obra publicada em diversos países, académico premiado, ensaísta e articulista profícuo. Não precisava de se preocupar com a educação escolar, esse assunto tão pouco prestigiado, de travo desagradável e sempre incómodo. Decidiu, porém, fazê-lo, enfrentando o discurso mercantilista que tem tomado conta dela, desvirtuando-a; afirmando, em contrapartida, com firmeza e tenacidade, os valores humanistas que constituem a sua matriz.

Falo de Nuccio Ordine, subitamente falecido em Junho, numa idade em que o saber e a segurança confluem para consolidar a voz. No seu caso, uma voz inconformada: em simultâneo, de aberta denúncia e de esforçada esperança. Precisamos de a manter viva, de modo a evitar que a educação seja reduzida a cinzas.

 

UM LIVRO-MANIFESTO

Entendeu Ordine reunir o seu pensamento educativo num manifesto em forma de livro com o título A utilidade do inútil: “é um grito de alarme”, disse em 2017, quando esteve em Portugal para falar a uma imensa plateia, constituída maioritariamente por professores. Nele explicava a cativação da escola por uma dupla ideologia – neoliberalismo e utilitarismo –, que faz o mercado de capitais prosperar. Sustentando-se nas “leis do comércio”, subordina os actos humanos a investimentos, cujos lucros dependem de uma abordagem eficaz. Essa ideologia, que persiste no “profissionalizar” ao mesmo tempo que afasta a cultura, substrato da educação, “é uma loucura”, “mata a ideia de escola”, que mais se assemelha a uma “fábrica de diplomas”:

É que “vamos à escola para sermos pessoas cultas! Para sermos pessoas melhores, para sermos éticos (…) devemos estudar por amor ao conhecimento, por amor à aprendizagem, para que sejamos homens e mulheres livres. Os alunos têm de compreender que (…) só se é livre se formos sábios. E isso não tem nada a ver com o mercado e com aquilo que este pede” (2017).

É que “vamos à escola para sermos pessoas cultas! Para sermos pessoas melhores, para sermos éticos (…) devemos estudar por amor ao conhecimento, por amor à aprendizagem, para que sejamos homens e mulheres livres. Os alunos têm de compreender que (…) só se é livre se formos sábios. E isso não tem nada a ver com o mercado e com aquilo que este pede” (2017).

“(…) esta ideia do saber útil, de profissionalizar a escola, de olhar unicamente para o mercado, significa que perdemos totalmente a ideia da importância do conhecimento como experiência em si (…). É muito importante alimentar o corpo para viver, mas se não alimentarmos também o espírito, o homem não pode encontrar-se” (2023a).

Orgulhosamente à margem de princípios como a justiça, a igualdade, a liberdade, a democracia e, evidentemente, do amor ao conhecimento, vinculado à gratuitidade da sua partilha, os arautos desse mercantilismo afastam do nosso horizonte, sem darmos por isso, a “dimensão universal da função formativa da educação” (2016). Mesmo quando se trata de preparar para o exercício profissional, as competências técnicas devem ser subordinadas a essa dimensão:

“Equiparar o ser humano exclusivamente com a sua profissão seria um erro gravíssimo: em todo o ser humano há algo de essencial que vai muito além do seu próprio ofício (…), seria muito difícil continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça” (2016).

 

O INCONFORMISMO

Consciente destas consequências, cada uma mais inquietante do que a outra, Ordine viu, como nós vemos, se quisermos, a ideologia a avançar: os Estados vergam-se a ela, a sociedade aceita-a, instala-se no quotidiano escolar, os professores são tornados burocratas. Faz-se crer estar traçado o caminho do futuro, que é o único e o melhor possível. Parecendo não haver alternativa, resta-nos o conformismo?

Não, de maneira alguma! Isso significaria aceitar de boa mente que muitos, sobretudo os mais frágeis sob o ponto de vista cultural, nunca acederão a obras que, pela sua excelência civilizacional, podem elevar as pessoas, estimular a sua sensibilidade, permitir-lhes apreciar a vida de formas inesperadas. Recorrendo ao exemplo pessoal:

“Nasci numa pequena povoação da Calabria, numa casa onde não havia livros. Os meus pais não tinham estudado e na minha povoação não havia livrarias nem bibliotecas” (2022). “Nascer numa casa sem livros e com pais que não estudaram, viver numa pequena cidade do sul sem livrarias nem bibliotecas, sem teatros nem espaços culturais, não significa estar condenado à ignorância” (citado por Verdú, 2023).

“Nasci numa pequena povoação da Calabria, numa casa onde não havia livros. Os meus pais não tinham estudado e na minha povoação não havia livrarias nem bibliotecas” (2022). “Nascer numa casa sem livros e com pais que não estudaram, viver numa pequena cidade do sul sem livrarias nem bibliotecas, sem teatros nem espaços culturais, não significa estar condenado à ignorância” (citado por Verdú, 2023).

É, justamente, “o seu compromisso com a educação”, que sobressai na acta do júri que lhe atribuiu, neste ano, o Prémio Princesa de Astúrias de Comunicação e Humanidades, que não teve possibilidade de receber. Diz-se na acta:

“Ordine estabelece um diálogo com a sociedade contemporânea para transmitir, em especial aos mais jovens, que a importância do saber se encontra no próprio processo de aprendizagem. A utilidade da educação deve entender-se em termos de paixão pela busca do conhecimento e do melhor de cada pessoa, sem se circunscrever a um interesse económico. O seu trabalho académico centrado em figuras relevantes do Renascimento destaca a necessidade de recuperar a riqueza do Humanismo para as novas gerações” (2023a).

 

A ESPERANÇA

A escola tem de retomar o ideal que a criou: um espaço e um tempo de ‘ócio’ – porque liberto do trabalho profissional –, para estudar o conhecimento que a ela ficou confiado. Foi neste ideal que Ordine insistiu; insistindo também em que têm de ser, em primeira instância, os professores a pugnar por ele, não obstante todos os obstáculos, a começar pela desvalorização da sua função:

“o professor que se dedica a ser professor tornou-se algo marginal dentro do sistema”, que tende a investir muito dinheiro em tecnologia, mas não forma nem remunera adequadamente os professores. “E isso é uma estupidez: um bom professor (…) é fundamental para o futuro de uma nação e dos seus jovens (2023b)

Acontece que, com as investidas contra si, “os professores perderam a paciência para ensinar e a paciência tem de estar no centro da pedagogia” (2023a). Por isso mesmo, precisam de se unir para se reencontrarem com a beleza da docência e defenderem o direito à educação, no pressuposto de que ela “é um dos mais sólidos pilares da dignidade humana” (2023 a, b). Voltando às suas memórias:

“encontrei professores que me fizeram compreender a importância do conhecimento, sobretudo como forma de libertação pessoal. Para se ser um homem livre tens de ser culto porque se não, és escravo de outros que te apresentam as coisas” (2022).

Acontece que, com as investidas contra si, “os professores perderam a paciência para ensinar e a paciência tem de estar no centro da pedagogia” (2023a). Por isso mesmo, precisam de se unir para se reencontrarem com a beleza da docência e defenderem o direito à educação, no pressuposto de que ela “é um dos mais sólidos pilares da dignidade humana” (2023 a, b). Voltando às suas memórias:

Portanto, Ordine disse querer – há que querer! – uma escola em que “os professores não estejam soterrados em burocracias”, em que “o professor e o aluno estejam no centro” (2022). É nessas condições, e só nessas condições, que se pode dar o “milagre do ensino” (2022), que transforma os alunos e, talvez, o seu destino. Insistiu: “a vida de um estudante só pode ser mudada por um bom professor que transmita paixão e cultura” (2023a).

A mensagem de esperança que Ordine deixou como legado não se traduz em espera e ainda menos em inacção; traduz-se, bem pelo contrário, numa empenhada busca, de feição ética, por sermos bons professores e bons formadores de professores. Disse-o desta maneira em Maio passado:

“Essa é uma batalha que os professores que vão contra a corrente continuam a travar. Convido os meus colegas professores a tornarem-se hereges, a ensinar a heresia nos colégios e universidades, a combater a ideia de que devemos formar consumidores passivos e acríticos. Não, o que devemos fazer é formar jovens capazes de dizer não, capazes de criticar com força os falsos valores desta sociedade” (2023b).

 

REFERÊNCIAS

Fundação Princesa de Asturias (2023). Acta del jurado del Premio Princesa de Asturias de Comunicación y Humanidad, 4 de Maio. 

Ordine N. (2017a). A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado (entrevista a Bárbara Wong). Público, 21 de Outubro.

Ordine, N. & Gouveia, R. (2017). A utilidade dos saberes inúteis. Fundação Francisco Manuel dos Santos/Porto Editora.

Ordine, N. (2016). A utilidade do inútil. Manifesto. Matosinhos: Faktoria K.

Ordine, N. (2022). Lo que cambia la vida de un estudiante es un buen profesor (entrevista de Charo Ramos). Diario de Sevilla, 2 de Janeiro. 

Ordine, N. (2023a). Nuestra sociedad desprecia los saberes que no producen beneficio económico. Ethic, 13 de Abril. 

Ordine, N. (2023b). Convido meus colegas professores a se tornarem hereges (entrevista a Irene Velasco). El Confidencial, 14 de Maio

Verdú, D. (2023). Muere el escritor y ensayista italiano Nuccio Ordine, un gran humanista. El País, 10 de Junho. 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.