Edição 2020 do Prémio Ratzinger: Tracey Rowland e Jean-Luc Marion

Viver o Vaticano II a partir de um diálogo com a mentalidade contemporânea, sem a assimilar acriticamente e evitando ruturas radicais com o passado da Tradição cristã.

A teóloga Tracey Rowland e o filósofo Jean-Luc Marion foram galardoados com o Prémio Ratzinger no passado dia 1 de outubro. Segundo o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, na edição 2020 do prémio anualmente atribuído pela Fondazione Vaticana Joseph Ratzinger, procurou-se premiar autores leigos cuja obra promovesse uma “razão aberta” ou “alargada” na esteira de Bento XVI. Na conferência de imprensa onde foram anunciados os nomes dos vencedores, Ravasi sublinhou que, promovendo o aprofundamento da teologia do Papa emérito, a atribuição deste prémio tem por objetivo o diálogo entre a teologia e a cultura contemporânea. Nesse sentido, a razão a partir da qual se desenvolve a reflexão teológica estende-se muito para além da estrita racionalidade lógico-científica, cogitando também com os sentidos, sem os quais não seriam possíveis experiências estéticas, éticas ou religiosas.

Na conferência de imprensa onde foram anunciados os nomes dos vencedores, Ravasi sublinhou que, promovendo o aprofundamento da teologia do Papa emérito, a atribuição deste prémio tem por objetivo o diálogo entre a teologia e a cultura contemporânea.

Compreende-se, assim, a escolha de Marion, um fenomenólogo francês que, tendo estudado com Jacques Derrida e tendo sido amigo pessoal do cardeal Lustiger, nunca teve pudor em assumir publicamente a sua fé católica e o seu apreço pela obra de Joseph Ratzinger, mesmo em ambientes radicalmente laicos como o da academia francesa. Apesar de aceitar prosseguir a sua reflexão filosófica na esteira de Husserl e Heidegger, bem longe dos ditames da metafísica tradicional, Marion revela-se capaz de repensar Deus para além da ontologia, isto é, para além da ‘questão do ser’. Propõe, nesse contexto, um novo princípio fenomenológico: “tanto de redução, tanto de doação” («autant de réduction, autant de donation»). Trata-se, essencialmente, de mostrar que tudo o que aparece, o que se mostra, primeiramente se . Por outras palavras, o primeiro fenómeno ao qual temos acesso, o fenómeno de nós mesmos em relação com tudo o que nos envolve, constitui um “dom”, qual “doação” irrecusável. As categorias do “dom”, do “dado” e da “doação” tornam-se, assim, fundamentais na descrição de todo e qualquer fenómeno. Além disso, a partir do princípio da “doação” primeira, noções como “eros”, “amor” e até “Deus” revestem-se de um novo teor. É interessante notar, nesse contexto, como a sua obra Le phénomène érotique de 2003 mostrou, ainda antes de Bento XVI o ter afirmado na sua célebre encíclica Deus caritas est (2005), que não há eros sem ágape, nem ágape sem eros. Com efeito, o movimento de quem se abandona completamente a um outro integra-se no desejo de se unir a ele. O mesmo acontece com o sentimento de compaixão e com os gestos da mais pura caridade: quem age em prol de alguém ou de um Bem a alcançar, sente-se afetivamente atraído por essa pessoa ou ideal. O fenómeno erótico não se reduz, portanto, ao desejo desmesurado de possuir outrem: esse fenómeno pode, antes, revelar a unidade do amor de Deus a partir da pluralidade dos amores vividos na contingência deste mundo. Se, afinal, somos imagem de Deus, só no amor que vivemos se poderá manifestar a nossa semelhança para com Ele. Um percurso fenomenológico que procura dizer Deus dessa forma nunca o faz a partir de uma metafísica abstratamente construída, que se aplica a posteriori ao real: diz Deus apenas em função daquilo que experienciamos enquanto homens e mulheres deste mundo. E é por isso que esta abordagem é fundamental para a Igreja do terceiro milénio: porque procura situar-se na experiência concreta das pessoas que coabitam o mundo connosco.

Quanto à teóloga Rowland, a escolha não se deve apenas à defesa que ela assume de Ratzinger face aos seus críticos mais ferozes – cf. Ratzinger’s Faith: The Theology of Pope Benedict XVI (2008), Benedict XVI: A Guide for the Perplexed (2010) e Catholic Theology (2017). Trata-se, sobretudo, da promoção de um “humanismo cristão” que desde cedo atraiu o Papa emérito no seu percurso teológico, levando-o a renovar o essencial da Tradição cristã num panorama distinto da antiga escolástica na qual se concentrava a teologia anterior ao Vaticano II.

Por fim, creio ser interessante o facto de ambos os premiados estarem ligados à revista Communio. De facto, enquanto Marion é um dos cofundadores desta revista católica internacional, nomeadamente na sua edição francesa, Rowland integra atualmente o seu Conselho Editorial. Em meu entender, a atribuição do Prémio Ratzinger a estes dois autores, que nada têm em comum a não ser a pertença à mesma Igreja e a ligação à revista cofundada pelo Papa emérito, convida-nos a fazer nosso o projeto que a Communio assumiu como seu. Nesse sentido, ao ler as obras destes dois autores e ao escutar o que eles nos dizem sobre a Igreja e o seu último Concílio Ecuménico, somos estimulados a ler e a viver o Vaticano II a partir de um diálogo com a mentalidade contemporânea, sem a assimilar acriticamente e evitando ruturas radicais com o passado da Tradição cristã. É um caminho exigente, sem dúvida, mas parece-me que os galardoados desta última edição do Prémio Ratzinger se esforçam por percorrê-lo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.