No passado dia 29 de janeiro, a Assembleia da República, com a votação final global da Proposta de Lei (resultado da confluência das propostas do Bloco de Esquerda, PAN, Partido Socialista, Partido Ecologista “Os Verdes” e Iniciativa Liberal) que “regula a antecipação da morte medicamente assistida não punível”, aprovou a eutanásia e o suicídio assistido, quando verificadas determinadas condições. Não volto a insistir nas razões pelas quais tantos, incluindo o Ponto SJ através do seu último editorial, se expressaram contra esta abertura. Uma vez que o Parlamento se pronunciou, abre-se agora uma nova fase no processo legislativo, com o envio do diploma para Belém, mas também na mobilização daqueles que vivem com tristeza e indignação este momento. Parece-me que vale a pena olhar com serenidade (crítica) para o texto aprovado como forma de antecipar os próximos passos.
Concluído o processo parlamentar de elaboração da lei – especialmente demorado – não pode deixar de chamar a atenção a opacidade de todo o percurso, não só pela rejeição do pedido de referendo subscrito por milhares de portugueses, mas também pela aparente irrelevância de qualquer discussão pública séria. Dos sete pareceres solicitados a instituições do setor da justiça e da saúde, apenas o da Ordem dos Psicólogos se pronunciou (indiretamente) a favor da morte assistida, ao invocar a necessidade de acompanhamento psicológico do doente (não integrada no texto final). Do mesmo modo, das 17 audições realizadas pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, apenas uma foi de uma entidade favorável à eutanásia (a Plataforma Europeia “Wish to die”), a qual insistiu novamente na necessidade de envolvimento de profissionais da área da psicologia. Para que serviu este “debate”? Que contributos foram aproveitados na redação do texto final? Fica a sensação que o texto foi elaborado por um grupo de deputados encerrados nos gabinetes de São Bento e nas próprias posições ideológicas.
Fica a sensação que o texto foi elaborado por um grupo de deputados encerrados nos gabinetes de São Bento e nas próprias posições ideológicas.
A lei aprovada apresenta-se como uma “despenalização”, tendo no centro a alteração ao Código Penal no que toca aos crimes de “homicídio a pedido da vítima” (art. 134º) e “ajuda ao suicídio” (art. 135º), para excluir a sua punibilidade quando realizados nas circunstâncias e de acordo com os procedimentos previstos pela lei. No entanto, é claro para todos, em primeiro lugar para os promotores da lei, que se trata, na verdade, da introdução de um verdadeiro direito, pelo qual algumas pessoas, em determinadas condições podem pedir (e exigir) assistência médica para antecipar a própria morte. Não pode deixar de causar admiração e preocupação – além de tudo o mais – a incongruência sistemática que representa a introdução de um direito através da exceção a uma norma penal (infelizmente, a legalização do aborto já nos tinha habituado a este estratagema). A “criação” do direito à eutanásia ou ao suicídio assistido coloca, desde logo, o problema da aplicação do princípio da igualdade, pela qual é muito provável que as circunstâncias previstas na lei sejam progressivamente alargadas através da invocação de uma não discriminação, visto o carácter relativamente arbitrário das condições que a lei prevê.
No seu artigo 2º, o texto aprovado define a antecipação da morte assistida não punível como aquela que “ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal». Nesta formulação chama a atenção a quantidade de termos de difícil definição, que os juristas chamam “conceitos indeterminados”, os quais obrigam a um complexo trabalho de interpretação para serem aplicados. Esta indeterminação não poderá deixar de concorrer, mais uma vez, para o alargamento das condições em que a eutanásia e o suicídio assistido são praticados “legalmente”, tornando muito difícil a aplicação da norma penal que, em termos gerais, pune o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio. Por outro lado, estamos diante de uma situação em que a fronteira entre “crime” e “exercício de um direito” é estabelecida por um complexo procedimento, altamente burocratizado, deixando muitas dúvidas quanto à possibilidade de vir a ser aplicada a norma penal por pequenos (e talvez grandes) desvios. Neste caso, o princípio fundamental do nosso sistema penal “in dubio pro reo”, não poderá deixar de contribuir para uma previsível “rampa deslizante” de progressivo alargamento das situações a que a lei se aplica.
Esta indeterminação não poderá deixar de concorrer, mais uma vez, para o alargamento das condições em que a eutanásia e o suicídio assistido são praticados “legalmente”, tornando muito difícil a aplicação da norma penal que, em termos gerais, pune o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio.
Outra preocupação que surge da leitura da lei diz respeito à já acenada complexidade do processo através do qual é avaliado e verificado o desejo de eutanásia ou de ajuda ao suicídio, entre reiterações do pedido, pareceres e confirmações. Tal procedimento não poderá deixar de exigir recursos, em particular humanos, que terão de ser desviados de outras tarefas do pessoal médico e restantes intervenientes. Permanece a dúvida acerca dos custos envolvidos, mas também – e sobretudo – da prioridade que deverá ser dada a estes procedimentos, no contexto de um sistema de saúde já altamente pressionado. Para mais, a leitura atenta dos trâmites previstos revela a condição de profundo isolamento em que o doente é considerado. Em nenhum momento (a não ser quando esteja impossibilitado de assinar) o requerente da morte assistida é visto como parte de uma teia social, em nenhum momento o seu desejo de morrer é submetido a outra apreciação que a das condições estritamente médicas em que se encontra. Nem mesmo a assistência psicológica (nem que fosse a pedido do próprio) se encontra prevista, sendo-o, paradoxalmente, para os profissionais de saúde envolvidos.
Nem mesmo a assistência psicológica (nem que fosse a pedido do próprio) se encontra prevista, sendo-o, paradoxalmente, para os profissionais de saúde envolvidos.
Justamente, a lei prevê a possibilidade de objeção de consciência por parte de todo o pessoal de saúde, o qual deverá manifestar a sua recusa em participar nos procedimentos de morte antecipada medicamente assistida. Além de revelar, naturalmente, a sensibilidade do que está em jogo, esta abertura coloca a questão de saber o que sucederá se o número de objetores for tal que ameace a efetividade da lei. Corre-se assim o risco de ver alguns (poucos?) médicos tornarem-se “especialistas” em morte antecipada, e possivelmente a criação de estruturas especializadas, o que certamente deixaria muitas dúvidas quanto à seriedade do procedimento, além da repugnância que gera a criação de um “negócio da morte”. Por último, a restrição estabelecida no art. 2º, nº 2 que limita a possibilidade de aceder à eutanásia ou ajuda ao suicídio a cidadãos nacionais ou legalmente residentes não fecha de todo a porta ao perigo de vermos aparecer um “turismo da morte”, seja através de abusos, seja, no quadro da União Europeia, pela invocação da liberdade de circulação e proibição de discriminação entre cidadãos comunitários.
A lei terá agora de passar pelo crivo do Presidente da República, o qual poderá devolvê-la ao Parlamento com veto político (que poderá ser ultrapassado por maioria absoluta dos deputados) ou entregá-la ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva. Qualquer que seja o desfecho do processo legislativo, a defesa da vida e a promoção de uma cultura do cuidado continuam a ser um desafio e uma tarefa para quantos acreditam na dignidade e na liberdade vividas na solidariedade. Diante de uma certa a “indiferença geral” perante o tema (potenciada, é certo, pelo contexto gravíssimo de pandemia que atravessamos), somos chamados a intervir, com coragem e criatividade, mas renunciando a posturas defensivas ou moralistas, mais nas obras que nas palavras, mais no contacto concreto com as pessoas – em particular as que mais sofrem – que na teoria.
Fotografia: Emily Morter – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.