Dar a César o que é de César

A fé cristã não contém nenhuma solução única, nem reconhece nenhum partido que a represente, mas sim obriga cada um a fazer escolhas conscientes, buscando todo o esclarecimento necessário e votando (ou não) em nome do bem comum.

No evangelho segundo S. Marcos (com paralelos em Mateus e Lucas) encontramos uma famosa disputa de Jesus com os seus adversários, acerca do pagamento dos impostos exigidos pelas autoridades romanas, que Jesus conclui afirmando: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mc 12,17)

Esta resposta constitui um “clássico” e uma máxima orientadora para um modo de estar cristão no âmbito social, político e económico. No entanto, de tanto repetir-se pode acabar por perder o seu sentido. A controvérsia com os fariseus, mais do que sobre economia ou política, parte de um problema religioso: pagar o imposto ao imperador romano é, para um judeu devoto, reconhecer a legitimidade de uma autoridade em concorrência com Deus, único soberano de Israel. Assim, para o Antigo Testamento, qualquer questão política ou económica é, antes de mais, um assunto religioso pela possibilidade de incorrer no pecado por definição que é a idolatria. Com a sua réplica, Jesus não contrapõe uma total separação de esferas, mas antes vem trocar as voltas a esta relação: para um cristão, tudo aquilo que é religioso, é também político, económico e social, pois frente a um Deus que é Amor, o pecado maior é a indiferença (outro nome do egoísmo).

O preceito sobre o que é de Deus e o que é de César não pode, portanto, servir para desligar a nossa fé daquilo que é a vida pública e social. A fé cristã é, por natureza, política, não porque os padres, bispos, ou o Papa, devam exercer o poder político, ditar as leis ou determinar a organização económica (modos de presença da Igreja na sociedade hoje felizmente ultrapassados), mas porque cada cristão é chamado a viver como membro e como construtor de uma comunidade de irmãos. O mandamento do amor, principio básico de toda a moral cristã, não se aplica apenas às acções e relações privadas, mas também ao nosso comportamento em sociedade: como cidadãos, trabalhadores, consumidores ou adeptos de futebol… E na esfera social, política e económica o amor tem um nome específico: chama-se bem comum. Para um cristão, as instituições não existem como entidades abstratas e impessoais, mas apenas em função das pessoas que elas estão destinadas a servir. Por detrás das diferentes estruturas sociais, está o próximo que somos chamados a amar e cuidar, e cada gesto nosso tem um impacto no todo, seja grande ou pequeno, desde separar o lixo a cumprir com as obrigações fiscais, e portanto pode ser um gesto de amor ou desamor.

A Bíblia, e de modo especial os evangelhos, falam-nos de um Deus que tem um carinho e um cuidado especial pelos últimos: o órfão e a viúva, no Antigo Testamento, a ovelha perdida ou o filho pródigo das parábolas de Jesus.

A defesa do bem comum, como distintivo do modo cristão de olhar a sociedade, exige atenção, discernimento e o desejo de escolher, diria S. Inácio de Loyola, apenas aquilo que mais ajuda ao fim de toda estrutura e grupo social, a dignidade de cada pessoa, querida e amada por Deus. Deste princípio fundamental a Igreja tem vindo a elaborar uma “doutrina social” que oferece aos cristãos e a todas as pessoas de boa vontade, como ferramenta para construir sociedades mais justas e orientadas para o maior bem de toda a humanidade. De toda essa reflexão, gostaria de destacar apenas duas consequências que podem servir de resumo e de ponto de partida para o aprofundamento de cada um:

Em primeiro lugar, a atenção aos membros mais necessitados da sociedade, como critério orientador: aquilo que a Igreja designa como “opção preferencial pelos pobres”. A Bíblia, e de modo especial os evangelhos, falam-nos de um Deus que tem um carinho e um cuidado especial pelos últimos: o órfão e a viúva, no Antigo Testamento, a ovelha perdida ou o filho pródigo das parábolas de Jesus. Esta preferência não significa que Deus ame mais a uns do que a outros, mas sim a sua implicação pela transformação do mundo no sentido da justiça e da paz, um ideal que os cristãos são chamados a assumir e pôr em prática nas suas acções e modos de vida.

Em segundo lugar está o especial dever de participação nas coisas públicas que traz consigo a fé cristã. Acreditar em Jesus, desejar imitá-lo e segui-lo deve suscitar o nosso interesse pelas questões sociais, políticas e económicas, de modo a agir com a consciência informada e com determinação, tomando parte nos debates e fazendo as escolhas que as mais diversas situações exigem, tendo no horizonte o ideal do bem comum. A fé cristã não contém nenhuma solução única, nem reconhece nenhum partido que a represente, mas sim obriga cada um a fazer escolhas conscientes, buscando todo o esclarecimento necessário e votando (ou não) em nome do bem comum e do que lhe parece ser a melhor forma de construir uma sociedade mais humana e fraterna.

Artigo originalmente publicado no essejota.net, um site da Pastoral Juvenil dos Jesuítas que já não está disponível. No momento em que foi publicado estavam programados diversos atos eleitorais. 

Fotografia de  Kasturi Roy – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.