Cultivemos o próximo, admiremos o simples

«Apropriarmo-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, "salva-nos".»

Vivemos tempos incertos de hostilidade permanente, de “guerra híbrida”. A invasão da Ucrânia pela Rússia soma-se a muitos outros conflitos em curso e a outros tantos mais antigos que parecem não ter fim. Novas e sofisticadas ameaças de conflituosidade e de divisão pairam no horizonte geoestratégico. Polarizações, sectarismos, radicalizações medram no terreno da indistinção crescente entres teorias da conspiração e histórias verdadeiras, como se factos e opiniões, verdade e mentira valessem o mesmo. «As pessoas sempre tiveram opiniões diferentes. Agora, têm factos diferentes», podemos ler em O crepúsculo da democracia, de Anne Applebaum (Bertand, 2020).  Afirma-se, “o apelo sedutor do autoritarismo”, enfraquece-se o ethos democrático.

Afirma-se, “o apelo sedutor do autoritarismo”, enfraquece-se o ethos democrático.

Em Os engenheiros do caos (Gradiva, 2023), depois de analisar bastidores, atores, processos e técnicas de novos populismos, Giuliano da Empoli conclui que «a única hipótese de escapar à influência dos engenheiros do caos é afirmar uma visão motivadora do futuro e substituir o medo pelo desejo, o negativo pelo positivo». Se é certo, como afirma, que «produzir mensagens e narrativas positivas não é difícil por si», mas que verdadeiramente difícil «é garantir que elas contenham energia suficiente para captar a atenção e, depois, para mobilizar ativamente as pessoas a quem se dirigem», não será menos certo que restará sempre a cada indivíduo e a cada comunidade alguma margem de escolha do caminho a percorrer e do modo de o percorrer. A ira e o medo instigados por trolls e algoritmos não anularão por completo a liberdade. Não importa se as opções que se tomam sejam minoritárias. Sabemos também que o que é duradoiro se constrói lentamente.

Sabemos também que o que é duradoiro se constrói lentamente.

O filósofo catalão Josep Maria Esquirol, no seu livro A resistência íntima (Edições 70, 2015), encoraja, precisamente, à resistência, como ato de força livre e criativa não violenta. «A resistência íntima expressa-se negativamente como um não ceder ante as forças e as ameaças desagregadoras […], quando o mais fácil – e, por isso, o mais natural – é acomodar-se às circunstâncias (se são agradáveis) ou render-se ao fatalismo (se o que se passa é doloroso) […]». Há, hoje, forças desagregadoras que condenam tanto à dispersão da exterioridade superficial quanto ao narcisismo da interioridade intimista: o primado da atualidade que é explorada até à náusea pelos ciclos noticiosos e partilhada compulsivamente pelas redes sociais, entre a adesão fanática, a rejeição violenta, o escândalo permanente, que exclui, à partida, a complexidade, os tempos longos, a paciência do amadurecimento e da decantação, para exigir tudo-sempre-pronto-imediatamente; ou a absolutização da racionalidade técnica, utilitarista, consumista e monocromática do “para que serve?” como chave-mestra de compreensão da realidade, de valoração das coisas, de gestão da vida. Resistindo a tais modelações de niilismo, que é doença do espírito, e ao vazio, à ausência de horizontes de sentido, à desistência, que são suas expressões, o “resistente” opta livremente pela “proximidade”, pela “quotidianidade”, pelo “cuidado de si” que, para ser verdadeiro, implicará sempre o “cuidado do outro”. A sua resistência não é, por isso, desistência ou fuga – «“quem vai para o deserto não é um desertor”». Recua, sim, em relação à corrente dominante e às modas do momento, à dispersão e ao narcisismo, ao excesso de palavras e à deterioração da linguagem, para recuperar proximidade e contacto com o real que está “perto da mão e do olhar”: proximidade de cada um a si mesmo (à memória, aos afetos, aos desejos, às limitações…), aos outros, aos espaços naturais, sociais e culturais onde habita, ao trabalho que faz. Opta em liberdade por um modo de vida que cultive a autenticidade a partir do que é mais quotidiano, elementar, nuclear: a autenticidade do que é humano, que para ser tal não precisa de superar a fragilidade e os limites; a autenticidade do lugar, das relações, dos ofícios; e, claro, a autenticidade da palavra. Esta forma de vida é como um regresso a casa. «Mais tarde ou mais cedo», afirma outro filósofo, Emanuele Coccia, em Filosofia della casa (Einaudi, 2021) «deveremos reentrar em casa, porque é sempre e apenas graças e dentro de uma casa que habitamos este planeta». Mais do que artefacto arquitetónico, a casa é lugar doméstico, caloroso e aconchegado, de descanso e de proteção, a partir do qual se olha cada coisa, se unem as partes, se conjugam as diferenças, se estabelece intimidade com o que rodeia. É lugar afetivo, existencialmente necessário para olhar a verdade da realidade e para dizer a realidade com verdade. Compreendemos, por isso, que a grave crise da habitação que atinge atualmente tantas pessoas e famílias, jovens muitas delas, é bem mais do que um problema socioeconómico.

Há, hoje, forças desagregadoras que condenam tanto à dispersão da exterioridade superficial quanto ao narcisismo da interioridade intimista: o primado da atualidade que é explorada até à náusea pelos ciclos noticiosos e partilhada compulsivamente pelas redes sociais, entre a adesão fanática, a rejeição violenta, o escândalo permanente, que exclui, à partida, a complexidade, os tempos longos, a paciência do amadurecimento e da decantação, para exigir tudo-sempre-pronto-imediatamente; ou a absolutização da racionalidade técnica, utilitarista, consumista e monocromática do “para que serve?” como chave-mestra de compreensão da realidade, de valoração das coisas, de gestão da vida.

Tem razão Esquirol. Precisaremos de recuperar esta proximidade, o tato que colha «o sabor das coisas e o calor da pele». Precisaremos de nos exercitarmos a olhar a realidade a partir desse lugar “tátil” de observação, de a ler, de a pensar e de a dizer a partir desse contacto afetivo, benevolente e bendizente – a filósofa Isabella Guanzini identifica nessa forma de “ternura” a revolução de um poder gentil (Ponte alle Grazie, 2017). Para dizer bem não basta explicar as coisas, informar-se e informar sobre elas, medi-las, contá-las. É preciso o contacto: ser tocado e tocar, por esta ordem. «O superficial também é profundo», recorda Esquirol.

Íntimo, para o filósofo, significa próximo.

 

Canta ao anjo o louvor do mundo, não no mundo indizível, que a

ele não te podes gabar do esplendor do que sentiste; no cosmos

em que ele sente mais sentido, não passas de um novato. Por isso

mostra-lhe a coisa simples que, formada de geração em gerações,

vive como coisa nossa, perto da mão e do olhar.

Diz-lhes as coisas. Ele ficará mais atónito; como tu ficaste

junto do cordoeiro de Roma ou do oleiro nas margens do Nilo.

 

A propósito do poema de Rainer Maria Rilke, em a nona das Elegias de Duíno, comenta Esquirol:

Esta é a chave: «Mostra-lhe o simples». […] Evitemos procurar sempre o extraordinário, admiremos o simples e o lhano e aprendamos a apreciá-lo porque, de certo ponto de vista, é o que há de mais sublime. Eis aí a lição. Temo-la ao alcance da mão e, talvez por isso, seja, paradoxalmente, uma das mais difíceis. […] Apropriarmo-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, «salva-nos».

 

«Quão simples a vida é». Honestamente, saborear um pouco de pão molhado em azeite ou tomar um copo de vinho com amigos já bastaria para testemunhar a bondade da vida, para bendizer a sua graça e atravessar com mais esperança o seu custo, sem rendição nem alienação, sem dispersão nem desistência, porque, ainda nas palavras de Esquirol, «a finitude e a morte não se superam, enfrentam-se». Mas a vida, mesmo que apresente, por vezes, a fatura pesada do seu custo, dá-nos muito mais do que pão, azeite e vinho como lugares de bom gosto, de palavras benditas. Em tantos outros, mais modestos ou mais sofisticados, é-nos dada a graça de testemunhar a beleza do essencial, o sentido do elementar, a gratuidade do necessário. De facto, «apropriarmo-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, “salva-nos”».

O verão em que entramos e as férias, que para muitos lhe estão associadas, poderão ser lugar propício para refazer proximidades, talvez pela perda voluntária de tempo como caminho mais longo para recuperar o sentido gratuito e partilhado do tempo. Assim de lugares, de relações, de trabalhos. Far-nos-á bem agradecer e cuidar destes bons lugares. Cultivemos o próximo, admiremos o simples.

 

*Adaptação de “Admiremos o simples”, editorial do nº de julho de 2023 da revista Brotéria

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.