Crise pandémica: ambivalências e vias de esperança

Ainda não sabemos quais as mudanças que vieram para ficar, mas será na ponderação destas ambivalências que é necessário procurar caminhos e vias de esperança para o futuro pós-COVID.

Tal como a crise de 2008 suspendeu as reformas económicas e ambientais então em curso na Europa e no mundo, também a crise pandémica criou descontinuidades na transição energética e ecológica. Mas apesar deste efeito negativo, esta crise também trouxe ambivalências que desafiam a reflectir.

Acentuando uma tendência que já se fazia sentir, a crise instigou e acentuou a concentração de riqueza num número cada vez menor de pessoas e gerou um empobrecimento maior dos mais pobres. Os dados do Índice Global da Fome 2020 revelam que em mais de 50 países do mundo os níveis da fome continuam muito elevados. Por seu lado, a ONU publicou um relatório no verão passado onde estima que até 232 milhões de pessoas podem sofrer de fome até ao final de 2020 devido aos impactos económicos da pandemia de Covid-19.

Contudo, ao mesmo tempo, registam-se alguns sinais de crescimento da filantropia, e sobretudo a denúncia e a crítica pública a procedimentos fraudulentos como são os ‘paraísos fiscais’ têm-se exercido de uma forma mais intensa e generalizada incentivando o combate a estas práticas vergonhosas e inaceitáveis.

Uma segunda ambivalência prende-se com o facto de a pandemia ter imposto uma paragem da economia e justificado o adiamento ou a transgressão de muitas medidas de protecção ambiental (veja-se a destruição da Amazónia brasileira que aumentou 34,5% entre 2019 e 2020). Contudo, ao mesmo tempo, a experiência episódica da melhoria ambiental devido à redução das diversas poluições, mostrou que é possível e por vezes rápida a resiliência de alguns sistemas ambientais. Ficou sobretudo exposto que a causa principal da crise ambiental está largamente na queima de combustíveis fosseis ao contrário do que vinham afirmando as correntes negacionistas.

Ficou sobretudo exposto que a causa principal da crise ambiental está largamente na queima de combustíveis fosseis ao contrário do que vinham afirmando as correntes negacionistas.

Um terceiro aspecto, tem a ver com o modo como surgiram formas de descrédito na(s) governança(s), aumentaram as práticas de desobediência civil e também as figuras de irresponsabilidade como os populismos. Contudo, ao mesmo tempo, acentuaram-se os movimentos sobretudo juvenis lutando por um mundo ambientalmente mais são e humanamente mais justo. E, por outro lado, registou-se a valorização do papel do Estado Social, e dos serviços públicos todos, com destaque para os de saúde.

Uma outra ambivalência tem a ver com o facto de as possibilidades de contágio terem imposto regras de distanciamento, de isolamento e de desconfiança interpessoal que afectaram o reconhecimento social e diluíram vínculos. Contudo, ao mesmo tempo, activaram-se novas formas de intercomunicação, de manifestação e expressão públicas e avivaram-se sensibilidades à solidariedade social, à compaixão e ao sentimento de “amizade social” nas palavras do Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti.

Outra ambivalência prende-se com as tecnologias de informação e comunicação as quais deram um importante passo expandindo-se e impondo-se em todos os contextos incluindo as escolas e relações familiares – o que gerou um maior distanciamentos e artificialismo nas relações humanas. Contudo, ao mesmo tempo, diminuiu o número de info-excluídos pois aprendemos nos últimos meses a lidar com a informática como nunca antes, e aprofundou-se a reflexão sobre a nossa relação às máquinas e a necessidade de dominar os processos de interacção com elas e garantir as dimensões mais humanas de todas as comunicações, com destaque para os contextos escolares. E reconheceu-se também a subtil mas decisiva diferença que separa a interacção humana da simples transmissão de mensagens por via electrónica

Posto isto, ainda não sabemos quais as mudanças que vieram para ficar, mas será na ponderação destas ambivalências que é necessário procurar caminhos e vias de esperança para o futuro pós-COVID.

Uma dessas vias passa por reconhecer e promover a posição central da ideia de justiça socio-ambiental no contexto de um mundo interdependente onde o futuro só o poderá ser com todos, sem excluir e sem esmagar ninguém. A vacinação está a ser uma prova decisiva e já há um forte movimento cívico internacional que requer a distribuição justa da vacina abrangendo as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento (www.vacinaparatodos.pt). É certo que as iniquidades nessa distribuição estão a ser dramáticas: segundo um relatório recente da OCDE 94% das vacinas foram até agora ministradas nos países ricos. Contudo, como todos sabemos, o problema da pandemia é global e não haverá segurança enquanto a vacina não chegar a todos. É uma questão de racionalidade: exigem-se hoje soluções globais – tanto para a vacinação contra o COVID, como para as alterações climáticas, para o esgotamento de recursos ou para a insustentabilidade das desigualdades.

É certo que as iniquidades nessa distribuição estão a ser dramáticas: segundo um relatório recente da OCDE 94% das vacinas foram até agora ministradas nos países ricos.

Outra condição ou valor importante a promover é o da ciência responsável e cidadã, partilhada, portanto, e ao serviço da Humanidade e da Sustentabilidade do sistema terrestre de que dependemos.

Prioridade será também dinamizar o conjunto diverso, mas consistente, de politicas publicas a escalas múltiplas – internacionais, nacionais, regionais e locais – que têm vindo a ser propostas desde há alguns anos e que hoje ganham especial presença na agenda política mundial. É o caso do combate às alterações climáticas hoje animada pela reentrada dos EUA no Acordo de Paris. E é o caso das propostas do Pacto Ecológico Europeu que passam pela necessidade de uma mudança de paradigma energético para fontes renováveis e limpas e da também urgente protecção e restauro da biodiversidade tal como a aposta na economia circular. São projectos alinhados com a Ecologia Integral e todo o conjunto de acções propostas na Laudato Si.

Mencione-se por fim uma outra via de esperança que se encontra na generosidade, sinceridade e limpidez de propósitos que animam os novos movimentos juvenis e que são, não apenas um sinal de esperança no futuro da sustentabilidade, mas também o sinal de uma mudança dos tempos por parte de uma geração que viveu grande parte da sua infância e adolescência em contexto de crises sucessivas e que se recusa a desistir do futuro do mundo e da relação aos outros. É a geração R – da responsabilidade – que nos fita com algum compreensível ressentimento, mas também com a esperança na resposta a que em conjunto possamos construir.

Acresce a evidência que temos hoje e que a emergência da pandemia gerou, de que afinal  mudanças rápidas são possíveis – se houver necessidade, vontade e visão.

Fotografia: Robert Metz – Unsplash

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.