Correu tudo bem

Não se trata de escolher o fácil, nem tampouco o difícil. Este texto não é uma ode ao sofrimento, é antes uma dose de realismo, que tem no verso um convite a vivermos agradecidos e fiéis.

“Então, correu tudo bem?”, perguntaram-me várias vezes, depois de regressar de um período de missão com os Leigos para o Desenvolvimento. É uma pergunta que todos nós (sublinho, desde já, que me incluo) vamos fazendo a outros, a propósito de muitas coisas na vida: correu bem o dia de trabalho? Correu bem a viagem com os teus amigos? Correu bem a apresentação que tinhas de fazer e a conversa que querias ter com aquela pessoa? É uma pergunta genuína, de quem quer bem ao outro e se interessa pelo que se vai passando na sua vida.

Mas uma vez, talvez pelo cansaço do regresso e de tantas conversas a propósito desse tema, a pergunta incomodou-me e soou-me ridícula. Ri-me e respondi um bruto, seco e quase mal-criado “não”. Claro que não correu tudo bem, pensava eu. Num só dia acontece tanto, quanto mais num ano inteiro e num contexto em que a imprevisibilidade é a regra diária. Não dá para correr tudo bem. A minha resposta gerou desconforto – por causa da minha atitude pouco simpática e porque o não ter corrido tudo bem parecia ser motivo de preocupação.

Era caso para eu ter pedido desculpa, porque a pergunta era simples e bem-intencionada; mas não era caso, de todo, para preocupação. De facto, esse tempo pelo qual me perguntavam foi muito especial, muito bonito. Houve dias difíceis, mas experimentei uma paz nova nos meus limites. Sentia que, apesar de pouco ou nada correr de acordo com o planeado, estava a fazer aquilo para o qual me sentira chamada.

Volta e meia, este episódio ia ecoando em mim: sem ser de forma consciente, ia pensando na pergunta, no efeito que tinha provocado em mim; na resposta e no que esta tinha provocado na pessoa. Porque é que geraram desconforto? Afinal, o que significa correr tudo bem? Será que olhamos para a vida de forma irrealista?

De facto, esse tempo pelo qual me perguntavam foi muito especial, muito bonito. Houve dias difíceis, mas experimentei uma paz nova nos meus limites. Sentia que, apesar de pouco ou nada correr de acordo com o planeado, estava a fazer aquilo para o qual me sentira chamada.

Passaram-se umas semanas e, ainda neste tema, veio-me à cabeça uma cena quase cómica, dentro do imaginário popular e infantil daquilo que poderá ser o Céu – aquele ambiente, cheio de luz e pessoas confortáveis em cima de nuvens, típico de filmes e cartoons. Imaginei Jesus a regressar ao Céu, depois da Sua vinda à terra, e a encontrar alguém (talvez um anjo, um profeta, ou uma qualquer personagem do Antigo Testamento). Alegre com o reencontro e empolgado para saber sobre a aventura triunfante do Messias, cumprimentava-O e perguntava-Lhe: “E então, Senhor?? Correu tudo bem?”. Imaginei Jesus a coçar a testa, a pensar o que poderia responder e como poderia explicar que não, não correu tudo bem, mas sim, correu tudo bem.

Nascer numa manjedoura, no meio de animais, crescer discretamente durante 30 anos e só 3 de vida pública, numa vida agitada, que incluiu traições dos amigos e uma condenação injusta que levou à morte numa cruz como um criminoso… não é bem a primeira coisa que nos salta à cabeça quando pensamos numa missão que corre bem. No entanto, ao mesmo tempo, a missão foi cumprida: Jesus amou sempre, cada dia, até ao fim. E, claro, a vida de Jesus não foi só problemas e sofrimento – também foi uma vida cheia de alegria.

Não se trata de escolher o fácil, nem tampouco o difícil. Este texto não é uma ode ao sofrimento, é antes uma dose de realismo, que tem no verso um convite a vivermos agradecidos e fiéis. Porque não é improvável que os nossos planos saiam furados, que os contextos mudem, que novas variáveis venham acrescentar complexidade ao que vamos atravessando. Mas é na fidelidade que encontro a maior Beleza. Acredito que foi (também) para isso que Jesus encarnou – para nos mostrar que “correr bem” não é que tudo flua sem ruído ou cansaço; é, antes, caminhar à luz da nossa identidade e missão. Somos filhos amados, chamados a amar. Para Jesus, correu tudo bem.

Fotografia de  Tommy Lisbin – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.