O absurdo do sem sentido

O que nos diz a Paixão do Senhor sobre quem é o nosso Deus? O que nos revela do nosso Pai? O que nos diz sobre o significado do Amor? O que nos convida a fazer nas nossas próprias vidas?

O que nos diz a Paixão do Senhor sobre quem é o nosso Deus? O que nos revela do nosso Pai? O que nos diz sobre o significado do Amor? O que nos convida a fazer nas nossas próprias vidas?

Sexta-feira Santa. Hoje, a liturgia pede-nos que contemplemos um Homem, Jesus, o Filho de Deus que morre. Todo um dia à volta da morte de Jesus. Depois teremos o Sábado Santo como dia do silêncio. Mas porquê? Se já sabemos que Ele ressuscitou, que está junto do Pai, que intercede por nós, porquê estar sempre a pensar no sofrimento e na morte?

É natural que estas perguntas nos surjam no coração. É difícil tocar o sofrimento de Cristo, olhar para Jesus desfigurado. Faz-nos, de certa maneira, tocar o nosso próprio sofrimento, as nossas lutas, os nossos “sem sentido” e absurdos com que somos tantas vezes deparados na nossa vida – não há vidas fáceis -.

Podemos, então, perguntarmo-nos porque não olhamos só para o positivo, para a beleza, para a Ressurreição e esquecemos a dor e o sofrimento? Afinal de contas não é o sofrimento, mas o amor, que nos salva! Sim, e salva do quê?

No nosso mundo, a dor, e, sobretudo a morte, são temas incómodos. Fazemos tudo para a adiar, para a retirar do nosso quotidiano, para não a vermos. Quanto mais nos iludimos a viver como se a morte não existisse, mais nos angustiamos com ela. A morte é incómoda, certo, tal como tudo o que a recorda: a derrota, o fracasso, a vulnerabilidade….

Os Evangelhos falam-nos de Jesus como um homem que ama a vida, que toma partido e “trabalha” para que a vida das pessoas que encontra seja plena, livre e abundante. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância!”. Jesus, que “era a Vida”, morre. E, hoje, de modo pedagógico, a liturgia propõe-nos uma narrativa longa e complexa, muito pormenorizada, que se desenrola precisamente em torno do acontecimento da paixão e morte de Jesus.

Querer chegar à Ressurreição sem passar pela Morte leva-nos a esvaziar o mistério e a domesticar a Paixão. Como consequência reduzimos Jesus Cristo a um mero fantoche e corremos o risco de aburguesarmos a sua imagem. Podemos até chegar a pensar que Deus premeia os bons e castiga os maus, que os que estão bem são abençoados e os que sofrem amaldiçoados.

Ao longo do Evangelho segundo São João, Jesus vai repetindo, quase como um refrão: “ainda não chegou a minha hora”. Começa por dizer isto a Maria, sua mãe, nas bodas de Canaã. Agora, na Ceia Pascal que recordamos na Quinta-feira Santa, diz solenemente o texto: “sabendo Jesus que chegara a sua hora” – finalmente a sua hora chegou! Uns dias antes desta ceia, em Jerusalém, uns gregos pediram para falar com Jesus, queriam conhecê-Lo. A resposta de Jesus é desconcertante: “Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem.(…) Agora a minha alma está perturbada. E que hei-de Eu dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu vim!” (Jo 12, 20-27). É esta a hora do Senhor. É esta a hora de Jesus.

A graça a pedir mais constante ao longo da nossa vida, ou melhor a suplicar, é graça do conhecimento íntimo de Jesus. Quanto melhor O conhecermos, quanto mais entrarmos numa união íntima com Ele, melhor nos conhecemos a nós mesmos e melhor O podemos amar e seguir. Ora, conhecer Jesus é entrar na sua vulnerabilidade: não há amor que não seja vulnerável. Não há amor que não faça de nós vulneráveis. Porque ama, Jesus é vulnerável. Porque ama vai à Cruz, porque ama sem limites entrega toda a sua vida. Acompanhando o Senhor que vai à cruz, entramos no mistério profundo da sua entrega. Talvez nunca cheguemos a compreender realmente o porquê do seu sofrimento, mas podemos compreender que a sua entrega é a daquele que ama incondicionalmente. Porquê? Por que tinha de ser assim? Se calhar é mais cristão perguntarmo-nos o para quê. O que nos diz a Paixão do Senhor sobre quem é o nosso Deus? O que nos revela do nosso Pai? O que nos diz sobre o significado do Amor? O que nos convida a fazer nas nossas próprias vidas?

Tal como o reconhecimento da vulnerabilidade de Jesus nos abre a porta para o conhecermos e mergulharmos na sua intimidade, o reconhecimento das nossas vulnerabilidades é porta por onde o Senhor pode entrar na nossa vida. As nossas “paixões” são porta de entrada da ressurreição. Não as nossas forças, mas as nossas fragilidades são lugar onde o Espírito Santo se pode manifestar. Pois quando sou fraco, então é que sou forte. Isto não significa que somos uns coitadinhos. De maneira nenhuma! Significa que o reconhecimento da nossa fragilidade permite enfrentar o mundo não sozinhos, mas com o Senhor. Reconhecer as nossas fragilidades permite-nos um olhar realista sobre nós mesmos e viver com a dignidade de Filhos de Deus.

Jesus vem para nos salvar, para nos dar a sua salvação. E quer que o acolhamos tal como somos, com as nossas dores e fragilidades, as nossas lutas e vulnerabilidades.

Jesus vem para nos salvar, para nos dar a sua salvação. E quer que o acolhamos tal como somos, com as nossas dores e fragilidades, as nossas lutas e vulnerabilidades.

Tantas pessoas são levadas à cruz, todos os dias! Há vidas que se tornam cruz. Aquele que ama diante da cruz do outro? Se amamos o que fazemos? Acompanhamos. Estamos presentes. Carregamos a cruz.

Naturalmente evitamos a dor e o sofrimento. E ainda bem! Significa que temos alguma sanidade mental. São Pedro também quer evitar que Jesus vá à cruz. Não aceita ver o seu Senhor tão maltratado. Mas foi necessário que Pedro reconhecesse Jesus naquele Homem silenciado, maltratado, humilhado para poder reconhecer verdadeiramente Jesus Cristo, filho de Deus vivo, o Senhor do Céu e da Terra, o Kyrios.

Uma vez que São Pedro compreende que Cristo foi até ao fim por amor, pode deixar-se amar na sua traição, pode sair e chorar amargamente. Finalmente se reconhece amado sem condições.

A Paixão é um sem sentido, um absurdo. Não faz sentido nenhum em si mesma. “Só o Amor é digno de fé”, só o Amor é digno de ser seguido, só o Amor dá e é o sentido da vida. Não há nada que não seja amor na vida de Jesus. Não há nada que não seja amor na entrega de Jesus. Este é o sentido de tudo o que Jesus é e faz: amar. Ama incondicionalmente cada um de nós e por isso, sendo consequente o amor, dá-se até ao fim.

Evitar pensar, refletir e contemplar a Paixão de nosso Senhor, é evitar mergulhar no mistério do Amor absolto, total e incondicional que Deus tem por cada um de nós.

Pedro não aceita nem reconhece um Senhor que lhe lava os pés. É curioso que na arte quase sempre que se representa alguém que dá uma esmola ou alguém que ajuda o outro, o que ajuda está numa posição superior, olhando de cima e o que está em baixo recebe a ajuda. Com Jesus não é assim, o Amor não é assim! O A(a)mor dá-se, entrega-se, oferece-se, abaixa-se, começa do ponto mais baixo onde nos possamos encontrar para nos elevar.

Ignorar a Paixão e ir diretamente à Ressurreição é meter os critérios humanos na vida de Jesus. É ignorar o grande amor com que somos amados. É ignorar o sentido que Ele nos convida a dar à nossa vida. Nascemos para Amar e deixarmo-nos amar tal como somos.

Na verdade, a Paixão de Jesus continua presente enquanto houver alguém que sofra a injustiça, a dor, a violência. Enquanto um irmão ou uma irmã sua sofrerem, a Paixão de Cristo é atual, porque quem ama sofre com o amado.

 

Transfiguração e Paixão

No início do Evangelho de Marcos, nas margens do Jordão, pouco depois do Batismo, a certeza da filiação é revelada a Jesus: “Tu és o meu Filho, o Amado: em ti pus o meu enlevo”.

E depois, a meio do Evangelho segundo São Marcos, temos a Transfiguração no Tabor (Mc 9,2-8).

A Transfiguração é um acontecimento que tem semelhanças com o evangelho da morte de Jesus (Estamos num monte, há muito pouca gente, evoca-se o profeta Elias).

Há também elementos contrastantes: às vestes resplandecentes do Tabor corresponde um Jesus despojado das suas vestes, à luz da transfiguração correspondem as trevas sobre toda a terra.

No Tabor, Jesus transfigura-se na presença de Pedro, Tiago e João. O Tabor é a montanha do coração, é uma explosão de felicidade e de luz, uma experiência de grande libertação, um ponto de vista privilegiado da existência. Aqui o coração de Jesus abre-se, dilata-se a ponto de perceber, como no Baptismo, a voz de Deus que lhe revela, mais uma vez, quem Ele é, qual é o seu papel na vida.

“Jesus falava com Moisés e Elias” – Quem são estas duas personagens?

– Quem é Moises? (Livro do Êxodo)

Durante muito tempo, o povo de Israel aceitou a opressão no Egito. Moisés vê um dia um egípcio a chicotear um israelita, sente uma revolta dentro de si e mata o egípcio, foge para tentar expiar esse pecado… mas nunca o desejo, o sonho, pelo seu povo o abandona, e um pouco mais tarde fará a experiência de um Deus que escuta os gritos e os lamentos da humanidade oprimida.

-Quem é Elias? (1 Reis 17ss)

Elias começa com a descoberta do medo que os homens tinham (e têm!) dos deuses, dos ídolos e dos demónios. Elias luta contra o Baal. Quando Elias aparece, o povo de Israel poderia ter vivido feliz na terra prometida, mas Elias vê um povo inclinado à idolatria.

Simplificando, se Moisés é o homem da libertação “exterior”, Elias é o que trabalha pela liberdade interior, procura um caminho de liberdade e prepara o caminho da felicidade e do sento no meio de um mundo angustiado e com medo do divino.

Quando, na Transfiguração, Jesus escuta Moisés e Elias… Jesus escuta no seu íntimo o desejo de liberdade e de libertação da humanidade.

No final deste diálogo entre Jesus, Moisés e Elias, ouve-se uma voz: “Este é o meu filho muito amado”, mas desta vez, ao contrário do que aconteceu no Batismo, acrescenta: “Escutai-o!”.

Mas ele não será ouvido, pelo contrário: a mensagem de Jesus, na sua mansidão desarmante, fará emergir, como que por contraste, todo o ódio do mundo que o assassina.

Este momento do Tabor é aquele em que, para a Igreja primitiva e, ainda hoje, para as Igrejas orientais, se sintetiza a imagem que Jesus tinha diante dos olhos para ousar a viagem para o Gólgota. A subida de Jesus ao Monte da Transfiguração conduz do ponto mais alto da felicidade ao ponto mais alto do sofrimento.

O Tabor é a imagem oposta e preparatória da Sexta-Feira Santa.

Arrancar-lhe-ão as vestes, tentarão tirar-lhe a felicidade….

Para descer ao pior, ao mais mortífero dos abismos teremos na nossa vida um Tabor, um lugar, um acontecimento que une a Terra ao Céu: momentos de luz e de sentido. Momentos de grande beleza e de sentido. Esse é o lugar da comunhão com Deus. É o centro vital que dá ordem e sentido a toda a nossa história.

Para descer ao pior, ao mais mortífero dos abismos teremos na nossa vida um Tabor, um lugar, um acontecimento que une a Terra ao Céu: momentos de luz e de sentido. Momentos de grande beleza e de sentido. Esse é o lugar da comunhão com Deus. É o centro vital que dá ordem e sentido a toda a nossa história.

A profundidade do abismo no vale do Getsémani é iluminada de antemão e só se torna possível pela luz do Tabor. Podemos compreender quanto sofrimento uma pessoa pode suportar, não como algo imposto de fora, mas como algo aceite, aceite por decisão própria, apenas pela medida da sua felicidade, pela sua proximidade do Céu. O sofrimento que se pode suportar é igual ao amor que se conhece e que se entrega.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.