Breve elogio do bom-senso esclarecido. O caso da restrição de ecrãs na escola

Não se trata de afastar do horizonte pedagógico-didáctico toda e qualquer tecnologia, mas de se ter critério na sua escolha e no seu uso, visando-se sempre um ideal de formação humana.

Na educação, tal como noutros campos, há circunstâncias em que o bom-senso, o conhecimento que o informa e a crítica que lhe dá substância, tendem a esfumar-se. Mas, porque somos capazes de pensar, dando conta disto, podemos reorientar-nos. É o que parece estar a acontecer em alguns sistemas de ensino. Face à deriva tecnológica para a qual, neste século, têm sido empurrados sob o pretexto de que, para assegurar o futuro, é urgente inovar, acima de tudo a esse nível, parece surgir uma dúvida razoável: estaremos no caminho certo?

 

1. Seduzidos que andamos pela imparável “fantasia futurista” – a expressão é de António Nóvoa[1] – proporcionada pelas constantemente renovadas tecnologias digitais, temos, como sociedade, promovido, contribuído ou consentido que os seus espantosos recursos entrem na educação e se infiltrem nas suas mais diversas dimensões. O problema não está propriamente aqui mas no facto de numa tal “fantasia” se garantir que tudo o que a escola pode proporcionar é superado por essas admiráveis tecnologias. Portanto, há que avançar para a “dissolução” da instituição, tal como a conhecemos, bem como para a “modificação” da docência. Num novo sistema, que se almeja globalizado, serão precisos alguns contextos, físicos e/ou virtuais, capazes de acolher crianças e jovens, mas não exactamente escolas; serão precisos alguns tutores, mentores, inspiradores, gestores capazes de os estimular e apoiar, mas não exactamente professores.

Crianças e jovens que, numa lógica de “ubiquidade”, em regime de agency e co-agency, operarão os seus gadgets, em função de interesses e necessidades próprias. Isto quer dizer que organizarão e regularão autonomamente a aprendizagem: escolherão “o que” querem aprender, “para quê” e “como”. Em ambientes virtuais “gamificados”, aprazíveis e colaborativos, alcançarão, sem esforço, o “bem-estar”, por via da aquisição de “competências, conhecimentos, atitudes e valores”, sobretudo de carácter emocional, que lhes permitem ter “sucesso pessoal e profissional” num mundo que é digital e não vai deixar de o ser.

 

2. O leitor, mesmo não sendo especialista em pedagogia, estará familiarizado com esta “narrativa”, a qual, contando com um apreciável historial, tem sido, em tempos recentes, burilada, difundida e tornada “normal”, graças ao habilidoso marketing de que o “negócio global da educação” se socorre para potenciar os seus dividendos. Não é raro políticos, académicos e práticos replicarem-na, legitimarem-na e operacionalizarem-na. Desta maneira tornou-se no modo desejável – se não no único modo – de pensar e actuar.

Slogans recorrentes como “não há alternativa” (There is No Alternative – TINA), que configuram a pressa e pressão de “transformar”, ingredientes de tal modo de pensar e actuar, aliados a medos muito humanos como o de “perder algo” e de “ficar de fora” (Fear of Missing Out – FoMO), têm inibido uma discussão aberta sobre a dita “fantasia futurista”; em concreto, sobre o seu real sentido e consequências.

Todavia, neste como noutros casos, há um momento em que a dúvida surge aqui e ali, vai-se socorrendo de informação e chega à decisão. É isto que tem acontecido nos últimos meses no respeitante à designada “digitalização” da aprendizagem, a qual, em virtude dos proveitos que se lhe imputam, dá-se como inevitável. A “transição” – do papel para os ecrãs – começa, de facto, a ser debatida de modo alargado e esclarecido, até em países que inicialmente a aceitaram com grande entusiasmo. Cientistas e filósofos têm investigado e interpretado ideias e resultados, oferecendo conhecimento confiável; jornalistas têm dado conta disso nos diversos meios de comunicação social; educadores têm-lhe prestado atenção.

 

3. Essa discussão tem conduzido à restrição e regulamentação e, até, ao recuo, especialmente em dois casos. Um caso é o uso de telemóveis no espaço escolar, sobretudo por provocar o fechamento das crianças e jovens em si próprios, pelos múltiplos conflitos e perigos a que os expõe – bullying, abuso, dependência, atenção superficial – e, em última instância, comprometer o seu desenvolvimento cognitivo, afectivo e motor. O outro caso, é o uso de manuais e textos digitais, sobretudo pelas repercussões negativas que podem ser observadas, de modo geral, nos resultados académicos e, de modo mais específico, em dificuldades na leitura, escrita e matemática.

Entidades supranacionais que participam nos desígnios da educação reconhecem o que acima mencionei. Refiro-me à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), não obstante a sua atitude dúbia relativamente à presença de ecrãs em meio escolar; e à Organização das Nações Unidas que, através da sua agência para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), tem mantido uma atitude mais clara e prudente. Esta última entidade, em recentes publicações[2], sublinhando a importância da “alfabetização digital”, notou que a “tecnologia digital”, a valer por si mesma, desvinculada da instituição que é a escola e com menosprezo pela função de ensino, além de prejudicar os alunos, dilui a raiz humanista da educação, fundamentalmente assente na relação interpessoal. Muitos são os estudos académicos, com destaque para os de revisão da literatura científica e de reflexão filosófica, que convergem neste sentido[3].

4. Em Portugal, apesar do realce que o Ministério da Educação deu ao Plano de Ação para a Transição Digital, que previa, entre outras medidas, a substituição dos manuais em papel por manuais digitais, a verdade é que o Ministro, veio recentemente, por um lado, suspender o alargamento da “experiência”, mantendo-a apenas para as escolas que a iniciarem em 2021/2022, e, por outro lado, solicitar um parecer a entidade externa sobre a “complexidade” inerente à posse de telemóveis por parte dos alunos, para poder decidir com mais propriedade o que fazer quanto ao seu uso.

A esta tomada de posição não será alheia a de um crescente número de políticos seus homólogos que, controlando o uso de ecrãs nos sistemas que tutelam, têm reinvestido no “papel e no lápis”. É o caso da Suécia, apontada entre nós como exemplo. E não será também alheio o que tem acontecido “dentro de portas”, desde há uma meia dúzia de anos: professores que persistem nesses recursos categorizados como “tradicionais”, por os considerarem mais seguros; diretores que, de acordo com os professores e encarregados de educação, determinam as condições em que os telemóveis podem estar na mão dos alunos; um presidente da câmara que, após o devido escrutínio, generaliza tais condições a todas as escolas da autarquia. Pelo meio surgiu uma petição pública em favor da limitação do uso de telemóvel em contexto escolar, que recolheu um número substancial de assinaturas aferindo a sensibilidade da sociedade.

A terminar, e recuperando o que acima disse, sublinho o seguinte: as circunstâncias presentes da educação escolar, tal como outras passadas, impelem a pensar, antes de mais, nas finalidades que, legitimamente, a devem orientar e só depois nos métodos e recursos que a sua concretização justifica. Estes dependem daquelas e não o contrário. Mas é o contrário que sobressai, ou nem isso, se atendermos a que, não raras vezes, as finalidades desaparecem da equação.

Dei o exemplo da influência exercida, através de mecanismos soft, por diversos agentes junto de escolas e professores para se associarem, sem reservas, à “transição digital”, que fazem crer valer por si mesmo. Ora, essa associação não pode acontecer à margem da crítica, a qual requer conhecimento e ponderação, aquilo que tenho designado por “bom-senso esclarecido”. Não se trata de afastar do horizonte pedagógico-didáctico toda e qualquer tecnologia – de resto, a integração de tecnologias na escola é uma realidade desde as suas origens –, mas de se ter critério na sua escolha e no seu uso, visando-se sempre um ideal de formação humana.

É claro que as crianças e os jovens ganham em ser ensinadas a usar tecnologias como ferramentas úteis no dia a dia, mas sem os fazer crer na “fantasia futurista” que tudo resolve, que substitui os professores e os livros, o estudo apurado e a reflexão conjunta, o convívio e o diálogo directo com o outro. A irmos por aí negarmos a essência da vida na escola, o que não devemos deixar acontecer.

 

 

[1] Nóvoa, A. (2022). Conferência e estudos Edulog. Professores e agenda para o século XXI. Jornal de Letras (edição 1351), 13 a 26 de julho. Reportagem Educação, 4.

[2] UNESCO (2021). Reimagining our futures together: a new social contract for education. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379707.locale=en

UNESCO (2023). Global education monitoring report summary, 2023: technology in education: a tool on whose terms? https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386147

UNESCO (2023). An ed-tech tragedy? Educational technologies and school closures in the time of COVID-19. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000386701

[3] Destaco dois estudos, cuja difusão tem sido assinalável:

Desmurget, M. (2021). A fábrica de cretinos digitais. Contraponto.

Biesta, G. (2018). O dever de resistir: sobre escolas, professores e sociedade. Educação (Porto Alegre) 41(1), 21-29. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/29749/16843

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.