Assumir os nossos invernos

Não fujas, não te escondas. Reúne a seiva em ti, reza, ouve-me e dorme. Não vivas à espera. A vida para ti começa hoje, e hoje é inverno.

Há uns anos, numa qualquer atividade beata, sugeriram-me imaginar que “tipo” de santa seria eu, se algum dia o chegasse a ser. Santa, não como título que se conquista, mas como algo que já se é por excelência, se se tiver a coragem de ouvir no coração o grito de um Deus que chama cá dentro e convida à transformação. Que puxa por nós, que “pica” e desafia a tirar o mundo da palma da mão e escalar “cada vez mais altos montes”. É o que este Deus faz em mim.

Este Deus faz muitas coisas em mim. É casa, mas é também o meu maior impulsionador, o que mais me desafia e interpela. Não é a voz chata que me lembra das tarefas aborrecidas que deixei por fazer num tom de indignado e imperioso. É a voz das maravilhas, a voz que tem e guarda surpresas escondidas a cada canto, a cada pessoa, a cada instinto, a cada impulso verdadeiro que o meu coração sussurra.

É um Deus entusiasmante. O que promete nunca é aborrecido. Nunca me deixa ficar mal ou desiludida. Até pode deixar-me com fome por algum tempo, mas sacia com pães e peixes, muitos mais do que os que sabia precisar. Quem diz fome, diz cansaço, comparação, diz a insegurança e o medo em que às vezes o cérebro e o coração se entrelaçam. Mesmo que as coisas a que chama às vezes me deixem com fome, Ele sacia sempre, sacia até as fomes enterradas que eu não sabia que tinha.

É um Deus entusiasmante. O que promete nunca é aborrecido. Nunca me deixa ficar mal ou desiludida. Até pode deixar-me com fome por algum tempo, mas sacia com pães e peixes, muitos mais do que os que sabia precisar.

Sempre fui uma criança tímida. Assustava-me a diferença que por defeito (ou por qualidade) todos temos, e que eu, por alguma razão, sentia ter um bocadinho mais que os outros. Talvez isso me tenha conduzido, ao longo do tempo, a abraçar aquilo que sou mais profundamente, porque naturalmente não o fazia. Ao crescer, percebi que é a minha mais forte arma, aquilo que sou de diferente e de original. Não para me autopromover ou para ser autossuficiente, mas descubro que a melhor forma de dar passos robustos e firmes é aceitar a minha velocidade, seja ela qual for. Abraçar os meus ritmos. Deixar que o mundo e que o Espírito me aconselhem, mesmo sem palavras. Só pela vida. Só pelas flores, que demoram cada uma o seu próprio tempo a florescer.

Abraçar os meus ritmos. Deixar que o mundo e que o Espírito me aconselhem, mesmo sem palavras. Só pela vida. Só pelas flores, que demoram cada uma o seu próprio tempo a florescer.

Ontem passei por duas amendoeiras, uma ao lado da outra. Uma vaidosa, assumindo sem vergonhas o esplendor daquilo que é a sua primavera, o seu florescer, sem vergonhas. Temos a coragem de viver sem vergonha?

Percebemos que Jesus nos chama a isso? Que a humildade não é sinónimo de esconder o nosso florescimento? Temos coragem de mostrar as nossas flores, tal como são? Incrivelmente frágeis e vulneráveis, incrivelmente necessárias para salvar o mundo, para ser luz? Temos coragem de assumir a nossa luz, abraçar as nossas cores e assumir os nossos ritmos? É que ser luz é também ser vulnerável. Florescer implica que houve um tempo em que a árvore estava nua e vazia, aparentemente sem perspetivas de melhorar.

Florescer implica que se irá ter frio e fome e vazio outra vez, mais à frente no caminho. Porque não florescemos por nós, mas pelo tronco, que nos dá a água e a estrutura, pelo Espírito que nos fala, pelo Deus que nos ama e nos conduz pelos invernos, verões e primaveras.

Percebemos que Jesus nos chama a isso? Que a humildade não é sinónimo de esconder o nosso florescimento? Temos coragem de mostrar as nossas flores, tal como são? Incrivelmente frágeis e vulneráveis, incrivelmente necessárias para salvar o mundo, para ser luz? Temos coragem de assumir a nossa luz, abraçar as nossas cores e assumir os nossos ritmos? É que ser luz é também ser vulnerável. Florescer implica que houve um tempo em que a árvore estava nua e vazia, aparentemente sem perspetivas de melhorar.

Ao lado desta árvore, no auge do seu esplendor, encontro outra do mesmo tipo, amendoeira. Vazia. Nua. O contraste é irónico, até mesmo chocante. Rio com os clichês das metáforas da primavera, talvez clichês por serem tao reais, por fazermos parte dela. Sorte a desta amendoeira. Vazia ainda. Uma página em branco, com tudo pela frente. Sorte o seu inverno ser no início do que o mundo estipulou como primavera. Sorte a dela, se tiver a coragem de assumir a beleza do que é. Que potencial o desta árvore. Não só porque vai florescer. Porque sem ela, não tinha escrito o que estou a escrever.

Foi esta segunda árvore que naquele dia me transformou. Porque saber assumir-se quem se é, e saber abraçar o tempo do que somos, é a magia que faz com que reparem em nós quando entramos na sala. Como eu reparei naquela árvore. Porque saber ser autêntico no que se é profundamente chamado a ser, vai ser sempre, para mim, caminho de felicidade profunda, daqueles que vêm com lágrimas, alegrias e verdade. Vai ser sempre água que sacia. A água de que este mundo tem sede, e que só nasce em quem ouve o Espírito em si que sussurra: preciso que hoje sejas inverno, até seres primavera.

Porque saber ser autêntico no que se é profundamente chamado a ser, vai ser sempre, para mim, caminho de felicidade profunda, daqueles que vêm com lágrimas, alegrias e verdade. Vai ser sempre água que sacia. A água de que este mundo tem sede, e que só nasce em quem ouve o Espírito em si que sussurra: preciso que hoje sejas inverno, até seres primavera.

Não fujas, não te escondas. Reúne a seiva em ti, reza, ouve-me e dorme. Não vivas à espera. A vida para ti começa hoje, e hoje é inverno. Porque é que não acreditas? Se assumires o que ainda não é (sendo, por isso mesmo) não temerás nada, e os olhos do mundo virar-se-ão para ti, porque o mundo também tem sede de quem assume o seu inverno. Serás sal da terra e luz do mundo; florescerás um dia e terás a sabedoria autêntica de ser quem és e de perceber que mais nobre do que a árvore que floresce é a árvore que assume o que é, de costas direitas e olhar firme, no inverno que vive e que é santo, por ser autêntico e necessário.

Alguns anos depois da atividade beata com que comecei cheguei finalmente a uma conclusão: se algum dia puder ser a padroeira de alguma coisa, que seja a da autenticidade, e que o meu dia possa ser um daqueles que acontecem no mais cerrado inverno, um qualquer no fim de janeiro, na fase em que os propósitos de ano novo caíram por terra e em que o Natal já lá vai longe. Naquela fase em que começamos a achar que, afinal, não temos remédio, e que se calhar, aquela esperança que noutros tempos tivemos era passageira. E que nesse dia, o maior festejo sejam as montanhas que Tu, Jesus, moves em nós mesmo quando por fora parecemos árvores nuas, frágeis e vazias. Ninguém sabe quando a nossa primavera virá. Assumamos o nosso inverno para que quando o tempo chegar as flores sejam testemunhas da ressurreição.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.