A praia. A minha praia.

Chega o verão e, depois de três meses em casa, só queremos ar livre, e sol, e se possível mar, areia, e praia. Cada um sabe qual é e o que revela a sua praia.

Chega o verão e, depois de três meses em casa, só queremos ar livre e sol e, se possível, mar, areia e praia. Cada um sabe qual é a sua praia. Para alguns é aquela em que pululam amigos estivais com quem se passa tão bom tempo. Para outros é só a sua, onde não se encontra vivalma, em que, quanto muito, só se vislumbra alguma silhueta humana muito muito ao longe. Para outros é onde se lê, ou se está com a família, ou se passa o tempo dentro de água, ou na areia a esturricar, ou ainda no meio de uma multidão acotovelada a mostrar como o verão é uma festa. Para outros ainda é a montanha.

Tenho a felicidade de viver no Algarve onde perto de casa há praias para todos os gostos, sobretudo nesta época do ano. No outro dia aproveitei uma horita livre para ir dar um mergulho, que o tempo estava muito convidativo. Após os quinze minutos de caminhada cheguei à escadaria de acesso à praia. As cores estavam fabulosas. As nuances de laranjas avermelhados das falésias argilosas contrastavam com os azuis esverdeados de um mar mesmo a pedi-las, e os beges do areal com pouca gente convidavam a pisá-lo.

Eis a minha praia. No meu estado consolado diante de um cenário tão bem criado e bonito, constatei que a meio da escadaria se encontravam uma série de apetrechos de ginástica e, entre eles, uma coluna a “bombar” (literalmente, não sei porque ponho aspas) uma coisa a que alguns chamam música. Logo um momento depois, vislumbro um vulto esforçado e sobretudo suado, com movimentos determinados e toscos, empenhado em acabar com tudo o que fosse massa lipídica do seu corpo. Andava escadas acima e abaixo, saltando, esbracejando e tudo o mais indicado para se pôr em forma, esquecendo-se, na sua concentração, de que a senhora que descia com sinais da posse de um apetite regularmente voraz também está em forma, porque o redondo também é uma forma.

Atravessei aquele cenário molestado pelo ruído. Aquilo não faz definitivamente parte da minha praia. Assumi aqueles passos como uma travessia do Mar Vermelho, processo difícil, mas inevitável para alcançar a liberdade que me esperava. Cheio de coragem, fi-lo a trote rápido e pude finalmente, com um pulo do último degrau, enterrar-me na areia e senti-la a correr por entre os dedos dos pés. Sorri de gozo, inspirando uma lufada cheia de maresia. O ruído ia desvanecendo-se como uma má memória do passado que logo pude esquecer. Atirei-me de corpo e alma ao Atlântico, rejubilando com o contraste da temperatura e minutos depois deitei-me na toalha. Em paz, com os sentidos confortados, o meu coração exclamou: “Louvado seja Deus! Esta é a minha praia!”.

Muitos vociferam aos quatro ventos as transformações que a pandemia trouxe. O mundo não será mais igual, apregoam. Não sei se será assim tão linear. O que parece evidente é que a pandemia veio revelar com ainda mais intensidade a realidade previamente já existente.

O paraíso foi de pouca dura. Afinal a vida ainda não é o gozo eterno. Deleitava-me eu com o som mais antigo da criação (diz o filósofo francês Emmanuel Levinas que é o rumor do mar) quando a memória sonora e atordoante da escadaria torna a ressurgir. Seria a brisa a traçar novos caminhos e a trazer aquele incómodo até a mim? Não era definitivamente a brisa. Era mesmo o atleta. Com ar vitorioso de quem venceu todas as dificuldades físicas impostas ao seu corpo descia à praia orgulhoso de seus feitos. Queria obviamente ser reconhecido pelo seu magnífico contributo para a história da humanidade e tinha de se fazer notar. Estava a conseguir. Não desligara a coluna e atormentava toda a vida à sua volta. Resolveu colocar-se a uns escassos quatro metros da minha ex-satisfeita pessoa. Dei-lhe uns instantes para tomar consciência de que estava a chegar à minha praia. Desviou-se uns metros do local onde tinha poisado os seus preciosos haveres e verificou que o volume da sua “bomba” não o satisfazia. Agarrou-se ao telemóvel e aumentou-o.

Olhei para ele. E ele para mim. Encolhi os ombros e abrindo os braços com um subtil levantar de queixo perguntei-lhe: “Então?”
– Então o quê? – perguntou ele.
– Somos obrigados a ouvir a sua música? – disse eu, achando que nomear aquele ruído de música não era condescendência cultural, mas uma mentira dita com todos os dentes.
– Se não quiser não oiça.

Aí confesso que me quedei confuso e uma série de combinações hipotéticas do que se me era dado viver na ocasião retouçaram no meu cérebro: Será que ele, na sua imaginação prodigiosa, pensa que tenho uma espécie de pálpebras auriculares que me tapam os ouvidos? Ou será que valerá a pena trocar alguma palavra com um ente que não dispõe da mais pálida noção do que é a (minha) praia? Será que na sua brilhante ideia se escrutina o rei do universo e mais além? Será que ele, na sua potência maquiavélica, apenas se deleita no massacre de pobres com escassos minutos de praia para gozar? Ou será que afinal ele vem mesmo de uma galáxia díspar e eu me situo num incubo do qual despertarei?

Ainda tentei conceder-lhe o benefício da dúvida:
– Como quer que eu não oiça, se está em cima de mim com isso a fazer barulho para uma praia inteira?
Nesse instante ele exibiu a verdadeira realidade do que é, e o seu mundo inundou definitivamente a (minha) praia:
– Se me está a chatear ainda ponho mais alto! – coisa que o fez, acrescentando: – Se quiser, chame a polícia!
Permaneci de olhos colocados no vulto, estupefacto de incredulidade, e queixo tombado.

De peito inchado de bazófia e no seu estilo parolo, o ginasta retirou a camisola e dirigiu-se ao mar de braços afastados do corpo, com andar gingão e desajeitado, crendo-se o macho alfa e rei da selva, mais uma vez vencedor dominante de todas as batalhas.

Enquanto cogitava sobre o jeito que me daria usufruir de um pai polícia, em vez de engenheiro, e trazia à memória a lista de todas as amizades pertencentes a forças de segurança que poderiam responder à diligência e conselho do sujeito, ainda lancei o meu olhar ao meu redor em busca de apoio e deparei-me com inumeráveis semblantes desagradados ao terem os tímpanos expostos àquela bestialidade. À medida que os ia correndo e examinando desviavam, envergonhados, os olhos. Ninguém se atreveu a reagir minimamente aproveitando a onda do meu protesto. Estava sozinho na nossa praia que se tinha transformado apenas na praia do matulão.

De peito inchado de bazófia e no seu estilo parolo, o ginasta retirou a camisola e dirigiu-se ao mar de braços afastados do corpo, com andar gingão e desajeitado, crendo-se o macho alfa e rei da selva, mais uma vez vencedor dominante de todas as batalhas.

Em tom de quem não queria desobrigá-lo assim tão facilmente, não conseguia remover os olhos daquele triste espectáculo e cogitei, à falta de botões, com o cordão do meu fato de banho: “se pensas que os músculos são a verdadeira força, já te digo”. Permiti condescendentemente que descesse um pouco mais em direção ao mar. Revesti-me teatralmente da minha cara mais enfurecida e vingativa para o deixar inquieto. Ele apercebeu-se e, chamado a cuidados para que a situação não se desequilibrasse em seu prejuízo, regularmente lançava uma mirada para trás, desajeitando ainda mais o seu andar. Intencionalmente, o foco do meu tremendo olhar alternava entre a sua pessoa e a fonte do estrépito ensurdecedor abandonada no areal. A cada passo o taçalhão acusava mais o receio que brotava da sua aparente superioridade.

Num ápice, apercebeu-se que se encontrava longe demais para evitar o cataclismo do seu universo e num acto desesperado e furioso ainda pensou poder vir a salvar algo daquilo que é. Desligar ou danificar o produtor de ruído seria como cortar-lhe a respiração, asfixiando-o.

Deixei-o tocar na água relaxando os seus sentidos e, esperando que me visse, ergui-me bruscamente na direção onde estavam os meus chinelos, a mesma dos seus valiosos pertences. Gerou-se o pânico no pouco espaço de ser que sobrava debaixo da sua massa muscular. Num ápice, apercebeu-se que se encontrava longe demais para evitar o cataclismo do seu universo e num acto desesperado e furioso ainda pensou poder vir a salvar algo daquilo que é. Desligar ou danificar o produtor de ruído seria como cortar-lhe a respiração, asfixiando-o. Num desespero de vida ou de morte, lançou-se em meu encalço com a dúvida se resistiria à aterradora perda. Permaneci impassível ao flanco das suas tralhas, fulminando-o com meus lindos olhos travestidos de trovão e em tom de desafio. Dava-lhe a entender que teria talvez uma oportunidade de luta corpo a corpo e o seu vigor gorilário aumentava a cada novo instante que lhe era concedido para a redução das distâncias. Tendo o bruto percorrido já metade do caminho, ainda mais desoxigenado do que quando saltava nas escadas, baixei-me e serenamente apanhei os meus chinelos. Não lhe dirigi mais o olhar. Ouvi uns grunhidos à distância e tomando o resto dos meus silenciosos haveres apartei-me suficientemente para regressar a uma praia que era a minha.

Muitos vociferam aos quatro ventos as transformações que a pandemia trouxe. O mundo não será mais igual, apregoam. Não sei se será assim tão linear. O que parece evidente é que a pandemia veio revelar com ainda mais intensidade a realidade previamente já existente. A minha praia existia antes. E a praia de outros também. Provavelmente antes convivíamos com concessões mútuas, sem notar tanto as crises e com episódios menos agudos. A pandemia veio tornar os doentes mais doentes, os pobres mais pobres, os que tinham trabalho precário ainda com menos oportunidades, os sozinhos ainda mais abandonados e os rudes conseguiram revelar-se ainda mais brutos. E o contrário também. Os que tinham trabalho estável continuaram a receber o ordenado, os saudáveis continuaram a fazer desporto e as dietas adequadas, as famílias estáveis encontraram-se para maior união e os mansos derreteram-se em ainda mais doçura.

A questão emerge das profundezas neste tempo de desconfinamento: O que revela a “praia” em que estou? Estou eu na “praia” que é a minha? O que posso fazer para me encontrar nela, com tudo o que sou?
Encontrar a minha “praia”, viver nela e torná-la a “praia” de todos é a verdadeira mudança a realizar-se. No fim das contas a praia não é de nenhum de nós. Apenas usufruímos do que o Senhor criou para todos nos encontrarmos.

Bons mergulhos!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.