A (não) escolha da felicidade, segundo David Berman

“Purple Mountains” é um disco onde coabita a escolha da felicidade com a sua negação, no qual cabe ao ouvinte decidir por que ângulo o quer abraçar.

Purple Mountains foi o nome coletivo que David Berman escolheu para identificar o grupo de músicos que reuniu, em 2019, para colocar um ponto final a uma década de afastamento da atividade musical. Este período de reclusão teve início com a sua decisão de terminar a carreira dos Silver Jews, que tinha criado em 1989 juntamente com Stephen Malkmus e Bob Nastanovich, ambos fundadores dos Pavement, um nome inescapável no contexto do indie-rock norte-americano.

Com a morte de Berman, em 2019, “Purple Mountains” fica para a história como o único registo do grupo, mas também como um conjunto arrebatador de 10 canções que temperam o indie-rock com um indisfarçável fascínio por sonoridades country e folk, às quais não será alheia a cidade de Nashville, local para onde o compositor e escritor se retirou durante o seu período sabático. Também os inúmeros livros por que se fez rodear nesse período (por si descrito, por esse facto, como a concretização de um sonho de infância) e o seu gosto por filosofia e religião (Berman foi, em vida, um Judeu praticante) acabaram por tecer a trama lírica que sustenta as construções rítmico-melódicas escutadas ao longo do disco.

A parte de leão do fascínio que emana deste álbum parece estar intimamente ligada, paradoxalmente, à aparente contradição entre a profundidade grave das palavras cantadas e a maior leveza musical que as embala. Por um lado, Berman dá ideia de pensar cada frase ao pormenor, atribuindo-lhe um alcance pesado e cinzento, mais vasto do que uma leitura descuidada possa revelar; por outro, os sons que se ouvem são acolhedores e, muitas vezes, luminosos, não exigindo esforço para a eles se aderir. Se o assunto escolhido é o apelo da morte, embala-o em instrumentos de sopro que induzem de imediato um bater de pé; se aborda a dor ou a amargura, fá-lo de uma forma despida e envolta numa fragilidade e delicadeza musicais desarmantes; se nos fala de abandono, deixa que teclados planantes amparem a queda e a tornem confortável; se é Deus, ou melhor, a sua ausência, quem está no centro das suas cogitações passadas a palavras, logo os sons se encarregam de trazer conforto e redenção. Isto é, tudo é construído como se o compositor soubesse onde reside a sua felicidade e a soubesse musicar, mas lhe resolvesse virar costas e detoná-la com palavras toxicamente impregnadas de amargura, desalento e capitulação.

Nesta coabitação do pessimismo das palavras com o otimismo luminoso da música há um amplo espaço para que cada um se sinta a gosto, num disco que nos conquista por dentro com a sua beleza feita de opostos.

Também é verdade que o autor nos propõe um burilado cruzamento de complexidades interiores sem respostas imediatas, algumas das quais habitam cada um de nós. Mas, tal como na realidade, se nos soubermos fixar no que é mais importante, é dessas interrogações vitais que emerge uma beleza feita de simplicidades, aqui materializada em canções servidas por uma voz não especialmente dotada, mas dedicada e honesta, com arranjos em que a sobriedade e a falta de pompa não são sinónimo de desleixo, porque claramente não são, mas sim uma passadeira estendida que nos permite entrar neste mundo sonoro como quem se reconhece em território próprio ou, pelo menos, em lugar fácil de adotar.

Nesta coabitação do pessimismo das palavras com o otimismo luminoso da música há um amplo espaço para que cada um se sinta a gosto, num disco que nos conquista por dentro com a sua beleza feita de opostos. E, pelo menos para nós, mesmo levando a sério algumas das inquietações do autor, torna-se evidente que escutar estas canções pode ser parte de um caminho de felicidade.

 

Fotografia de  Masha Shubin – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.