A morte também tem medo de ti

“Podemos falar da morte? Da nossa morte?” Uma apologia dos “olhos bem abertos” numa cultura da negação e da histeria.

Na tradição rabínica, a morte é um assunto muito sério. Tão sério que, às vezes, o momento fatal inaugura uma espécie de valsa lenta entre quem morre e a Morte, personificada sem os terríveis atributos a que o imaginário cinematográfico nos habituou. É assim o caso de Abraão, o “pai dos crentes”, e, por isso, talvez o “fundador” dessa maneira crente de morrer. Segundo nos contam os rabinos, nem Abraão estava pronto para partir, nem o anjo da morte (noutras versões, o arcanjo Miguel) estaria pronto a obrigar Abraão a partir. Este último personagem resiste até à ideia de lembrar Abraão de que ele deve morrer e não hesita em voltar para Deus sem ter cumprido a missão. Finalmente, depois de muita negociação, sobretudo entre o anjo e Deus, Abraão acaba por se dar à morte que, hesitante, o espera.

Estas tradições acerca de Abraão e de outros personagens bíblicos podem parecer-nos apenas infantis, ou, no melhor dos casos, uma curiosa peça de museu. Mas, numa roupagem literária que se calhar já não nos entusiasma, estas histórias tocam os desejos e as demandas que nos alcançam sempre. A hesitação do anjo da morte diante de Abraão é, no espírito da letra, uma abafada confissão da inevitabilidade da morte: até quem não merece (alguém merece?), tem de morrer. Mas, ela é também subtilmente um lembrete de que a morte é um encontro, entre o homem e o seu fim, entre a vida e a sua conclusão. Abraão acolhe o anjo da morte e prepara para ele uma refeição de festa, esmerando-se no exercício da virtude que melhor caracteriza a sua vida: a hospitalidade. A morte chega no decorrer do banquete (ou no final!), como uma culminação inesperada mas aceite, “outra” mas “pessoal”.

Na sua cruzada contra essa nossa tendência a negar à morte um lugar nas nossas “praças” (an Age of Denial), mostra que a verdadeira questão não é a dignidade ou a falta dela no fim da vida, mas o medo alimentado pela ignorância de que a morte mate mais que a vida, que seja um buraco negro onde tudo o que fizemos e todos os que amamos são precipitados num abismo sem fim e sem redenção.

Quando este artigo for publicado, já se saberá se os deputados votaram a favor (ou contra) a despenalização da eutanásia e/ou se o referendo sempre vai avançar. Os argumentos contra esta iniciativa legislativa, com números e factos, já foram apresentados aqui e noutros lugares com zelo e clareza. Comungando inteiramente da posição veiculada, o que me interessa aqui é a morte como tal. Ou melhor, cada um de nós diante da sua morte.

Se as tradições judaicas sugerem o que devemos querer, um livro recente, escrito por Kathryn Mannix ajuda-nos a perceber o que podemos esperar. With the End in Mind. Dying, Death and Wisdom in an Age of Denial (2017) é um relato na primeira pessoa de uma médica a quem foi dado o privilégio de acompanhar centenas de pessoas, ao longo de dezenas de anos, numa unidade hospitalar. Para quem, como eu, nunca assistiu em direto à morte de um familiar ou de um amigo, o livro de Mannix é uma revelação e um prodígio. Com uma delicadeza sem igual, o livro introduz-nos nesse santuário dos últimos dias ou horas de vida de outros homens e mulheres como nós. Sem esconder as surpresas e os sofrimentos, Mannix mostra o que há de profundamente humano numa morte que não é antecipada, nem escolhida. O livro não é um manifesto contra a eutanásia ou o suicídio assistido. Mas na sua cruzada contra essa nossa tendência a negar à morte um lugar nas nossas “praças” (an Age of Denial), mostra que a verdadeira questão não é a dignidade ou a falta dela no fim da vida, mas o medo alimentado pela ignorância de que a morte mate mais que a vida, que seja um buraco negro onde tudo o que fizemos e todos os que amamos são precipitados num abismo sem fim e sem redenção.

Kathryn Mannix não utiliza nunca a metáfora do encontro. E a morte não é uma personagem nestas histórias reais. Mas atrevo-me a dizer que há ali um convite, como na tradição rabínica, a olhar nos olhos o fim, o fim de cada um de nós. Não porque possamos viver sem medo, mas porque há uma sabedoria escondida nessa ousadia de não se negar o derradeiro dos “rostos”, como e quando ele se quiser apresentar.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.