A maravilhosa inutilidade de uma semente

A utilidade como critério de vida, como indicador do “sucesso” e “progresso” – vocabulário perigoso - oferece-nos das imagens mais distorcidas de Deus que podemos encontrar.

A utilidade como critério de vida, como indicador do “sucesso” e “progresso” – vocabulário perigoso – oferece-nos das imagens mais distorcidas de Deus que podemos encontrar.

Há um ditado indiano, parte dos escritos hindus, que diz: “Com que nome Te hei-de chamar? A Ti que estás para lá de qualquer nome?”

Há uma espécie de despreendimento total neste ditado, um abandono do controlo sobre as imagens que temos de Deus, pois Ele está para além de todas essas imagens. Jesus veio quebrar essas mesmas imagens. Os discípulos esperavam algo dele e de certa forma – e perdoem-me a ousadia – Ele desiludiu-os. Desiludiu-os porque eles viviam na ilusão, numa imagem construída de quem o Messias deveria ser, não compreendendo uma outra realidade que se apresentasse fora dos enquadramentos que eles tinham estipulado. Por isso, só o compreenderam, verdadeiramente, na Ressurreição. Na cruz, morrem as imagens e as esperanças associadas às imagens que tinham de quem Jesus deveria ser. Foi na Ressurreição, que uma vez abandonadas essas imagens, os discípulos despertaram para a Verdade, para a Vida, para a Boa Nova que Jesus nos/lhes trazia. A boa nova, não a velha.

O P. Cecil Azzopardi, sj, numa das suas intervenções deliciosamente desconfortantes e libertadoras, interpela-nos: “Que realidade é esta a quem chamamos Deus?” Desafia-nos a juntarmos os retalhos dos títulos, imagens, traços que compusemos sobre quem Deus é, numa tentativa de conhecer mas também de controlar a realidade, e de as pormos de lado.

“Como podemos falar de Deus, sem termos tido uma experiência de Deus?”, pergunta-nos Azzopardi, sj. Afinal, como podemos falar do amor, sem o termos experimentado? Como podemos compreender a dor, sem termos experimentado a dor?

Quem tem por critério de vida a utilidade, pouco deverá conhecer sobre “esta realidade a quem chamamos Deus”. Para quem a utilidade é uma medida no amor, nas relações, na forma como lidamos com os sentimentos, como consegue compreender o Amor de Deus?

Quem tem por critério de vida a utilidade, pouco deverá conhecer sobre “esta realidade a quem chamamos Deus”. Para quem a utilidade é uma medida no amor, nas relações, na forma como lidamos com os sentimentos, como consegue compreender o Amor de Deus? Um amor incondicional, um amor sem se’s, um amor sem medidas… é difícil de compreender.

Um dia, em conversa com um amigo, tentando eu entender este Amor de Deus e o que significa a Sua misericórdia, perante a minha incapacidade, de momento, em compreender como Deus me podia amar, ficando eu tão aquém daquilo que eu achava que Deus queria de mim, dando-me Ele tanto e eu falhando tanto, vezes e vezes já sem conta, este meu bom amigo, contou-me a seguinte história:

Um agricultor-semeador escolhe a sua semente favorita, a semente que irá fazer brotar a mais hermosa flor. Prepara a terra como quem ajeita uma almofada de penas, fofa, formando um vale de sonhos onde a cabeça irá repousar, acordando no dia seguinte, renovada, preparada para o novo dia. O Semeador semeia a semente e sonha com a formosa flor que irá desabrochar: de um rebento, num espreguiçar despreocupado soltar-se-ão as pétalas, e uma a uma, ocuparão o seu lugar de flor, numa coreografia de harmoniosa sintonia. O Semeador irá regar a flor, dar-lhe-á de beber, saciará todas as suas necessidades, deixará entrar o sol, proporcionará tudo aquilo que a encha de vida, para que ela cresça e venha a ser a linda flor, amorosamente sonhada até ao mais ínfimo detalhe. Dará espaço ao tempo, e tempo à terra para que as raízes assentem e se entranhem nesse vale dos sonhos que as alimenta e sustenta. E com tudo preparado e oferecido, acompanhando diariamente o crescimento da sua flor, o Semeador faz aquilo que lhe falta fazer: esperar. Espera que a flor desabroche no esplendor radioso para o qual foi criada.

Ao contarem-me esta história, pausaram aqui mesmo e perguntaram-me: “E se a flor não desabrochar, morrer na terra ou não conseguir crescer para ser a formosa flor que neste ponto da história, todos esperamos que aconteça? O que dirá o seu Semeador? Como se sentirá ele? Ficará zangado com a flor, dizendo-lhe: Eu dei-te tudo, fiz tudo para que fosses a flor mais bonita de todo este jardim, e tu não aproveitaste o que te dei, o que te dei de graça?”

O Semeador não semeou pedindo nada em troca à sua semente. O Semeador não plantou a semente na condição dessa ter de desabrochar e ser a mais bonita e florida flor do jardim.

E com paciência, sabendo que eu já sabia a resposta mas que ainda não a compreendia na totalidade, o meu amigo continuou: o Semeador não ficará zangado. O Semeador não semeou pedindo nada em troca à sua semente. O Semeador não plantou a semente na condição dessa ter de desabrochar e ser a mais bonita e florida flor do jardim. Plantou apenas, sonhou, cuidou e deixou crescer, amando a sua semente, não por vir a ser flor, mas por ser somente, a sua semente, aquela em quem pôs todo o seu agrado.

Também Deus será assim connosco, também será assim o Seu amor. Um amor sem condições. Um amor que não ama porque eu cumpro, atinjo as metas, porque sou profícua no trabalho, na vida social, na maneira utilitária com que encaro a minha missão e vocação. Um amor assim não nos amaria quando mais precisamos, quando não atingimos a nossa plenitude, o sonho para o qual fomos feitos, quando ficamos aquém das nossas próprias expectativas e exigências.

Como podemos conhecer esta realidade a quem chamamos Deus, se usamos do critério da exigência e utilidade para a compreender, para a experienciar, construindo uma realidade sobre quem Deus é, que é tudo menos o que Ele é, sendo um espelho da nossa parca versão do que é o amor? Viver com o critério de um amor utilitário, torna difícil experienciar e assim compreender o Amor de Deus: O amor de quem tudo dá, sendo no dar, que É.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.