A crise interior da democracia liberal

Inebriados pelo combate contra as forças «exteriores» que ameaçam a democracia liberal, tornámo-nos acríticos a seu respeito e dormentes aos seus crescentes desafios «internos», que existem e não cessam de crescer.

Quando se fala em “crise das democracias liberais” pensamos imediatamente em populismos, autoritarismos e que tais. Lembramo-nos de movimentos ou acontecimentos exteriores, que ameaçam ou diminuem as nossas democracias liberais. Este pensamento, por mais irrefletido e generalizado que seja, não deixa de ser revelador: demonstra como não concebemos, pelo menos num primeiro momento, a possibilidade de o modelo democrático-liberal ser a origem do seu próprio enfraquecimento. E por isso a solução que vislumbramos só pode ser uma: fortalecer a democracia liberal, nomeadamente através do fortalecimento dos direitos individuais. Proponho, neste texto, experimentarmos o exercício contrário, perguntando-nos se alguns dos principais desafios que as democracias liberais enfrentam hoje não serão precisamente fruto da sua própria árvore, isto é, consequências dos seus próprios princípios. Para isso trago três questões que, a meu ver, representam alguns dos desafios internos mais exigentes que as democracias liberais enfrentam na área social, económica e política.

O objetivo deste exercício não é subscrever movimentos radicais anti-sistema, nem enfraquecer a democracia liberal, mas somente demonstrar como a democracia liberal possui limites e falências.

Antes de analisar cada um dos três tópicos, quero começar por fazer uma declaração de intenções. O objetivo deste exercício não é subscrever movimentos radicais anti-sistema, nem enfraquecer a democracia liberal, mas somente demonstrar como a democracia liberal possui limites e falências. Como diria Alexis de Tocqueville, é por ser “amigo” da democracia liberal que a critico. (O facto de eu sentir que é necessário fazer este pequeno esclarecimento demonstra como a crítica amigável, especialmente de algo «intocável» como a democracia liberal, se tornou um terreno despovoado.)

1.    A liberdade de expressão

«Discordo do que dizes, mas lutarei até à morte para que o possas dizer», como (não) disse Voltaire. Este é um dos princípios basilares da democracia liberal, segundo o qual todo o cidadão deve ter o direito de se exprimir livremente, desde que não viole os limites legalmente previstos. Hoje ninguém discute que este direito representa uma importante conquista civilizacional e um alicerce essencial da democracia liberal. No entanto, aliado ao crescimento das redes sociais, a liberdade de expressão tem colocado em causa a própria qualidade e estabilidade democrática de uma forma sem precedentes. A velocidade e magnitude a que, através da internet, se propagam informações, muitas delas distorcidas ou falsas, constitui um novo desafio para as nossas sociedades livres e abertas. A saúde democrática tem sido ferida por si própria, por um dos seus principais direitos individuais. A grande questão que se coloca é a de saber se a democracia liberal possui em si as ferramentas adequadas para se curar de si própria, de se auto-aperfeiçoar. Até agora, os sinais não têm sido propriamente encorajadores (e falarei disso no próximo ponto).

A “culpa” deste desafio, que tem paulatinamente reduzido a qualidade da democracia global, não é dos políticos ou movimentos populistas e iliberais. Eles são os principais beneficiários e exploradores desta “doença” democrática, mas não são os seus criadores, porque este problema nasce da própria democracia liberal.

A “culpa” deste desafio, que tem paulatinamente reduzido a qualidade da democracia global, não é dos políticos ou movimentos populistas e iliberais. Eles são os principais beneficiários e exploradores desta “doença” democrática, mas não são os seus criadores, porque este problema nasce da própria democracia liberal.

2- As big techs & companhia

Existem empresas que valem mais do que o PIB de muitos países. Há um ano, estávamos assim: a Microsoft valia, sozinha, mais do que a soma do PIB de 8 países da Europa de Leste, a Apple valia metade do PIB da Rússia, a Amazon valia mais do que a soma de 9 países da América Latina, e a Alphabet (Google) valia mais do que a soma de 38 países africanos. Em resumo: quatro empresas a valerem mais do que 50 países. Quatro empresas com mais poder económico do que 25% dos países do mundo (50 em 195). É o resultado do mercado, da globalização e do espírito empreendedor, sem dúvida. Mas será que coloca em causa o funcionamento da democracia liberal? Sem dúvida, também.

O conceito de democracia tem diferentes acepções, existindo umas versões mais românticas do que outras, da volonté générale de Rousseau ao pragmatismo de Karl Popper. Mas será que o ideal do autogoverno é possível no contexto económico atual? Ou mesmo adotando uma conceção mais restritiva de democracia, à maneira popperiana (para quem o que importa é encontrar uma forma do povo substituir os maus governantes de forma pacífica), será que, através do voto, o povo tem o poder de alterar o rumo das grandes decisões dos nossos tempos? Tenho dúvidas de que a atual distribuição de poder económico – e, consequentemente, político – o permita. Quando tanto poder se encontra concentrado nas decisões de tão poucos, torna-se difícil de conceber que o povo, não só a nível regional, como nacional ou internacional, tenha uma palavra a dizer nas principais questões da política contemporânea. Neste caso, o crescimento dos mercados, próprio da democracia liberal, choca de frente com o próprio ideal democrático.

Neste caso, o crescimento dos mercados, próprio da democracia liberal, choca de frente com o próprio ideal democrático.

3- A liberdade individual

Os debates públicos e políticos atuais são monotemáticos ou, melhor dizendo, mono-argumentativos. Tudo gira à volta de um único conceito: a liberdade individual. Normalmente, as diferentes partes dos debates discordam sobre a aplicação deste direito à situação concreta, mas concordam na sua centralidade e omnipotência. Veja-se os grandes debates sobre desigualdade, impostos, eutanásia, aborto. Em todos eles, as partes evocam a liberdade individual como o principal, e porventura único, objetivo político a atingir. Nalguns casos, defende-se políticas que promovam a liberdade, noutros casos pedem-se medidas que a protejam. Mas, contra a liberdade, nada pode ser argumentado.

A liberdade individual é indubitavelmente um valor central nas nossas sociedades. Mas a tendência para excluir quaisquer valores concorrentes, nomeadamente de cariz comunitários, tem tido um efeito corrosivo nas democracias. Onde apenas se fala sobre o indivíduo, sobre o «eu», não sobra espaço para o «nós», para a noção de comunidade e de bem em comum. Ao se preocupar tanto em proteger o indivíduo, o discurso e atuação política descartam a noção de comunidade. Como resultado, aparecem novos movimentos para ocupar esse vácuo e que apelam fortemente à dimensão coletivista (nacional, regional, ética, religiosa). Para além de apelarem ao sentido comunitário, estes movimentos de revolta repelem o liberalismo sem qualquer pudor, e os efeitos estão à vista, com resultados eleitorais crescentes. Mais uma vez, os populistas aproveitam-se dos limites do liberalismo que rege as nossas democracias, mas não são eles os criadores deste cenário. Não nos desenganemos: é um problema que nasce da democracia liberal.

Estes três exemplos mostram-nos como a democracia liberal não é perfeita. Muitos outros poderiam ser referidos, mas o objetivo deste texto não era apresentar uma crítica compreensiva da democracia liberal. O que pretendia demonstrar era como, talvez inebriados pelo combate contra as forças «exteriores» que ameaçam a democracia liberal, nos tornámos acríticos a seu respeito e dormentes aos seus crescentes desafios «internos», que existem e não cessam de crescer, tão ou mais rápido que os desafios «externos». Aliás, estou até convencido de que esta divisão entre ameaças «externas» e «internas» não faz jus à realidade mais profunda, onde tudo partilha da mesma raiz, tudo nasce dos limites da democracia liberal. Por isso, se olharmos criticamente para dentro e, criativamente, (n)os superarmos, enfrentaremos também o que está fora. Está na hora de olhar mais para dentro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.