A caminho das férias

Tenhamos a vontade e a confiança para sairmos das nossas casas, do conforto que a rotina traz, da segurança que uma lista de tarefas leva ao dia a dia, e abramo-nos à contemplação, à novidade e ao espanto, mesmo nas pequenas coisas.

O nosso estilo de vida parece alimentado por uma pressão que nos grita a cada instante para fazermos muito e fazermos rápido, encaminhando-nos para uma rotina de processos automatizados, sem grande margem para o erro e, infelizmente, sem grande margem para o espanto.

Encanta-me ver, numa criança, expressões de deslumbramento e surpresa saboreada. Numa idade em que quase tudo ao seu redor é novidade, os olhos de um miúdo são capazes de reconhecer a magia que brota daquilo e daqueles que o rodeiam. Mas a perseguição de metas, a constante sensação de que estamos atrasados ou de que há algo que ainda está por fazer trazem-nos num sufoco que vai, aos poucos, asfixiando a nossa capacidade de nos deixarmos fascinar. E, assim, vamo-nos esquecendo do modo como outrora conseguíamos olhar o mundo.

Neste ano inaciano, que agora celebramos, deixemo-nos deslumbrar pela imensa luz que brota da experiência de Santo Inácio, ao pé do rio Cardoner:

«Uma vez, ia, por sua devoção, a uma igreja que estava a pouco mais de uma milha de Manresa, que creio eu que se chama S. Paulo, e o caminho vai junto ao rio. E indo assim nas suas devoções, sentou-se um pouco, virado para o rio que corria fundo. E estando ali sentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento; e não que visse alguma visão, senão entendendo e conhecendo muitas coisas, tanto de coisas espirituais, como de coisas da fé e das letras. E isto com uma ilustração tão grande, que todas as coisas lhe pareciam novas» (Autobiografia 30).

Ora, este tempo – que é, para muitos, de férias – pode ser um convite ao espanto.

As leituras da Vida dos Santos e da Vida de Cristo fizeram nascer em Inácio o desejo de ser santo. A sua enorme força de vontade fê-lo percorrer caminho, com devoção, penitência e entrega irrepreensíveis. Mas Inácio continuava a lutar com os seus escrúpulos e a querer traçar o próprio caminho de conversão. O abandono efetivo à vontade de Deus, numa confiança inabalável, não o amordaçou nas suas fragilidades: antes, pelo contrário, trouxe-lhe um olhar novo sobre todas as coisas.

Ora, este tempo – que é, para muitos, de férias – pode ser um convite ao espanto. Se formos capazes de interromper o trabalho a que nos dedicamos durante o ano, afastando-nos com a leveza do desapego e sem estarmos subjugados à pressão do inacabado, encontraremos em nós o tempo e o lugar para renovarmos o olhar sobre todas as coisas, incluindo a própria rotina, que – desenganem-se! – continuará à nossa espera. O repouso e os dias sem agenda não têm de ser vividos com sentimentos vãos: são oportunidade para saborearmos a vastidão e uma medida maior que o nosso gabinete de trabalho. Saindo, mesmo que seja apenas da rotina, abrimos horizontes e abrimo-nos à contemplação. Assim fazia Jesus: «Naquele dia, Jesus saiu de casa e foi sentar-se à beira-mar» (Mt 1, 1)

Tenhamos a vontade e a confiança para sairmos das nossas casas, do conforto que a rotina traz, da segurança que uma lista de tarefas leva à vivência do dia a dia, e abramo-nos à contemplação, à novidade e ao espanto, mesmo nas pequenas coisas de sempre. Busquemos a presença do Senhor no que nos oferece o tempo de férias, um pouco ao jeito do que descreve Santo Inácio, revelando uma profunda experiência de Deus:

«Atendendo à finalidade do estudo, os escolásticos não podem ocupar-se em longas meditações, além dos exercícios já prescritos para a sua vida espiritual: a missa quotidiana, uma hora de oração e exame de consciência, a confissão e comunhão cada oito dias. Mas podem exercitar-se em buscar a presença de Nosso Senhor em todas as ações, como é conversar com alguém, ir e vir, divertir-se, escutar, entender, enfim, tudo o que fizermos, pois verdadeiramente sua divina Majestade está em toda a parte por presença, poder e essência» (Cartas, n.º 32).

Se o formos capazes de fazer, renovaremos o nosso olhar e deixaremos que o fascínio da presença do Senhor invada o nosso coração. Somos feitos para o espanto. Que tudo o que façamos neste tempo de férias o façamos com uma expressão de deslumbramento e surpresa saboreada.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.