O doloroso genocídio dos Cristãos

Médio Oriente, África e Ásia. Mudam os países, mudam os protagonistas, mas na essência nada se altera. O Cristianismo continua a ser a religião mais perseguida no mundo e em muitos lugares assiste-se mesmo a tentativas de genocídio.

Médio Oriente, África e Ásia. Mudam os países, mudam os protagonistas, mas na essência nada se altera. O Cristianismo continua a ser a religião mais perseguida no mundo e em muitos lugares assiste-se mesmo a tentativas de genocídio.

De dois em dois anos, a Fundação AIS (Ajuda à Igreja que Sofre) publica um Relatório detalhado sobre a perseguição aos Cristãos no mundo. Na passada quarta-feira, dia 23, foi apresentado em Lisboa, a par de outras capitais europeias, o mais recente estudo que abrange o período entre julho de 2017 e julho de 2019. O documento revela uma realidade impressionante. Os únicos países analisados em que se verifica uma menor pressão sobre a comunidade cristã são a Síria e o Iraque. E apenas por causa da derrota militar imposta ao Daesh, o auto-proclamado Estado Islâmico. Mas mesmo em relação a estes dois países, o Relatório da Fundação AIS deixa sinais de alerta. A situação de forte instabilidade que se vive ainda nesta região poderá vir a acelerar o fim do Cristianismo se a comunidade internacional não atuar rapidamente. Esta é, aliás, uma das principais conclusões do documento.

Em Lisboa, a sessão de apresentação do Relatório, no Centro Nacional de Cultura, contou com a presença de Paulo Portas, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, que sublinhou a importância de o mundo não virar costas a “este combate desigual” em defesa da comunidade cristã nesta região tão atribulada do globo. “Temos o dever de lembrar às sociedades ocidentais que há muitos cristãos que são perseguidos, que não podem viver em liberdade, que uma parte da sua dignidade está capturada e que precisam de ser lembrados, que precisam de ser falados e que se actue mais em sua defesa”, disse Portas.

A Fundação AIS acaba de publicar mais um Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé. A sua leitura devia envergonhar muitas consciências.

Silêncio cúmplice

O silêncio cúmplice da comunidade internacional perante a tragédia que é vivida por cristãos em tantos lugares do mundo atravessa todo o Relatório e foi sublinhado também por Paulo Portas. “O Relatório usa a palavra genocídio quando tem de usar. Ela tem uma caracterização no Direito Internacional que é muito clara e aquilo que se passa em muitos lugares do mundo é um genocídio contra os Cristãos. É tão simples como isso, e tão doloroso como isso.”

A constatação de que há uma tentativa de genocídio em muitos países contra os Cristãos, havendo suficiente informação sobre isso, aumenta ainda mais a perplexidade dos que não entendem a razão para tanto alheamento. O Relatório produzido pela Fundação AIS é categórico no que diz respeito ao Médio Oriente, onde é inegável “o impacto” da violência terrorista do Daesh. A “presença dramaticamente reduzida” de Cristãos ou de Yazidis em diversas cidades ou vilas é hoje um sinal claro da tentativa de genocídio que teve lugar durante os tempos em que vastas regiões do Iraque e da Síria caíram nas mãos do ‘califado’ jihadista.

Desaparecimento da Igreja

Havia 1,5 milhões de cristãos no Iraque antes de 2003, mas em meados de 2019 esse número caiu para menos de 150 mil, havendo dados que apontam mesmo para menos de 120 mil. Ou seja, trata-se de um declínio de cerca de 90% no curto espaço de tempo de uma geração. O mesmo se passa na Síria, onde o número de cristãos caiu cerca de dois terços desde o início do conflito, em 2011.

A constatação de que há uma tentativa de genocídio em muitos países contra os Cristãos, havendo suficiente informação sobre isso, aumenta ainda mais a perplexidade dos que não entendem a razão para tanto alheamento.

“O impacto deste genocídio – continuação dos fluxos migratórios, crises de segurança, pobreza extrema e recuperação lenta – significa que pode ser demasiado tarde para que algumas comunidades cristãs do Médio Oriente recuperem. Nalgumas vilas e cidades, a contagem decrescente para o desaparecimento do Cristianismo parece imparável”, pode ler-se no Relatório.

Infelizmente, denuncia a Ajuda à Igreja que Sofre, a Igreja “poderá desaparecer” se vier a ocorrer “outro ataque da responsabilidade de grupos islâmicos radicais” sobre as comunidades mais vulneráveis. Trata-se, importa sublinhá-lo, de uma ameaça credível baseada em relatos de jihadistas que escaparam entretanto da prisão. Uma ameaça que ganhou atualidade com a fuga, nos últimos dias, de centenas de jihadistas e seus familiares da prisão de Ain Issa, no Nordeste da Síria, em resultado da intervenção militar da Turquia nesta região. Paulo Portas manifestou também a sua preocupação perante esta eventualidade. “Há o perigo do Daesh recuperar algum protagonismo. Será sempre um protagonismo letal.”

Ásia e África

O Relatório da Fundação AIS sublinha que houve também uma degradação das condições de vida das minorias religiosas, em que se incluem os Cristãos, no Sul e Leste da Ásia e também em África. Portas sintetizou esta realidade afirmando que “há uma nova geografia de preocupações”.

Só no ano de 2017, por exemplo, foram relatados 477 incidentes contra as comunidades cristãs na Índia, instigadas essencialmente por um discurso nacionalista cada vez mais radical. Recorde-se que foi também nesta região do globo, mais concretamente no Sri Lanka, que cerca de três centenas de pessoas perderam a vida e mais de 500 ficaram feridas na sequência de atentados bombistas contra três igrejas e outros lugares nas principais cidades do país no Domingo de Páscoa deste ano de 2019. As Filipinas foram outro país em que a comunidade cristã não escapou à violência jihadista.

O Relatório da Fundação AIS revela um verdadeiro mapa de terror em que se transformou a vida de milhões de pessoas vítimas da intolerância religiosa. O continente africano não escapa a essa realidade. No período em análise, houve até um recrudescimento de violência contra a comunidade cristã. Em vários países africanos, os Cristãos foram ameaçados por grupos radicais islâmicos que têm procurado eliminar a presença da Igreja.

Só no ano de 2017, por exemplo, foram relatados 477 incidentes contra as comunidades cristãs na Índia, instigadas essencialmente por um discurso nacionalista cada vez mais radical. Recorde-se que foi também nesta região do globo, mais concretamente no Sri Lanka, que cerca de três centenas de pessoas perderam a vida e mais de 500 ficaram feridas na sequência de atentados bombistas contra três igrejas.

O Boko Haram e a Nigéria

Na Nigéria, em especial na região norte e nordeste do país, os militantes jihadistas do Boko Haram continuam a desenvolver uma campanha de terror. Calcula-se que durante o ano de 2018, mais de 3700 cristãos foram mortos neste país. A sessão de apresentação do Relatório da Fundação AIS contou também com a presença do P. Gideon Obasogie, oriundo da Diocese de Maiduguri, na Nigéria, um dos epicentros do terror do Boko Haram.

Este sacerdote testemunhou situações dramáticas vividas nos últimos anos pelas indefesas comunidades cristãs perante a brutalidade de um dos mais temíveis grupos terroristas da atualidade. Afirmando que “o Terço tornou-se na nossa melhor arma”, o P. Gideon acusou também a forma negligente como a comunidade internacional tem agido em defesa dos Cristãos no seu país. “Há um silêncio estranho em que não se fala destas coisas.”

E “estas coisas” traduzem-se num inventário sangrento que começou principalmente em 2009, com as primeiras ações terroristas e prolongou-se até à atualidade com o Boko Haram a conseguir resistir às operações militares lançadas pelo Governo da Nigéria. O balanço desta década de terror fala por si. Diz o P. Gideon que, em resultado de todos os atentados ocorridos no norte da Nigéria, já terão morrido mais de 30 mil pessoas. Há, inclusivamente, quem avance com um número ainda mais trágico: 70 mil. Dificilmente se encontrará nessa vasta região nigeriana, que faz fronteira com o Níger, Chade e Camarões, alguma família que não tenha conhecido de perto a dor em resultado da violência do Boko Haram. Agradecendo o trabalho da Fundação AIS no apoio à comunidade cristã na Nigéria, o P. Gideon Obasogie defendeu, em Lisboa, que há imenso a fazer nas áreas mais atingidas pela violência terrorista. Reconstruir igrejas e capelas, seminários e estruturas de apoio social é fundamental, mas há algo mais urgente: “reconstruir a vida das pessoas”. Para isso, sublinhou este sacerdote nigeriano, “é preciso substituir sentimentos de ódio e vingança pela reconciliação”.

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Relatório da Fundação AIS foi apresentado por Paulo Portas. Contou com o testemunho do P. Gideon, um sacerdote nigeriano

“É preciso denunciar”

Além da Nigéria, os radicais islâmicos estão a tentar eliminar o Cristianismo em outros países de África. Madagáscar, República Centro-Africana, Burkina Faso, Mali, Níger, Tanzânia, e agora, mais recentemente, até Moçambique, são alguns desses países onde crescem inquietantes sinais de violência e intimidação. O terror vai-se espalhando. Perante esta realidade, “é preciso denunciar”, diz Paulo Portas. “É preciso denunciar o que sucede em algumas regiões do mundo, não deixar que o silêncio seja uma espécie de segunda condenação e esse é o trabalho que a AIS faz com o Vaticano, de dois em dois anos, com muitas dioceses que vivem em enormes dificuldades e com testemunhos que às vezes são confidenciais porque senão as pessoas são mortas. É tão simples quanto isso.”

Reconstruir igrejas e capelas, seminários e estruturas de apoio social é fundamental, mas há algo mais urgente: “reconstruir a vida das pessoas”. Para isso, sublinhou este sacerdote nigeriano, “é preciso substituir sentimentos de ódio e vingança pela reconciliação”.

O Relatório da Fundação AIS tem uma dupla finalidade: informar e mobilizar consciências. Paulo Portas sublinhou a importância deste trabalho. “No ocidente não falamos muito disto, como se estes cristãos não fossem nossos vizinhos no mundo. Isso só mostra que o ocidente hoje em dia tem uma certa dificuldade em reconhecer a sua matriz fundadora. Este Relatório, na verdade chama-se ‘Perseguidos e Esquecidos?’, mas o trabalho da Fundação AIS é muito importante para que nós, pelo menos por uns dias, possamos chamar-lhe ‘Perseguidos e Lembrados’. Este Relatório lembra quem está esquecido e sublinha quem é perseguido”.

Fotografias: Fundação Ajuda à Igreja que Sofre

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.