“Forçados como Jesus Cristo a fugir”

Na conclusão da Semana Nacional das Migrações, recordamos as palavras do Papa Francisco que tem convidado a que vejamos no rosto de cada deslocado do nosso tempo não apenas o rosto de Cristo, mas o nosso próprio rosto.

Na conclusão da Semana Nacional das Migrações, recordamos as palavras do Papa Francisco que tem convidado a que vejamos no rosto de cada deslocado do nosso tempo não apenas o rosto de Cristo, mas o nosso próprio rosto.

A Igreja Católica celebra o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado desde 1914. Neste ano de 2020, terá lugar a 27 de setembro próximo. Com a instituição deste Dia, a Santa Sé procurava responder às necessidades pastorais dos emigrantes italianos, que desde há algumas décadas se dirigiam em grandes levas para o continente americano. No início dos anos 50, respondendo a um movimento sem precedentes de pessoas que partiam de uma Europa devastada pela guerra para outras paragens, Pio XII viria naturalmente a recomendar que esta solicitude pastoral se alargasse aos migrantes de outras nacionalidades ou línguas. Mais tarde, a grande sensibilidade de S. João Paulo II para com a tragédia dos refugiados no mundo contemporâneo levou-o a estender também a esta categoria de pessoas em movimento a finalidade desta celebração.

Em diversos países, porém, as Igrejas locais celebram também em outros momentos do ano a realidade da mobilidade humana. É o que acontece em Portugal, onde agora termina a 48.ª Semana Nacional das Migrações- ver aqui a Mensagem da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana, que se inspira na Mensagem do Papa a que me refiro a seguir.

Este ano, o Papa Francisco pretendeu que a Mensagem que habitualmente escreve para assinalar este Dia chamasse à atenção para “o drama dos deslocados dentro da própria nação” em virtude de violências e conflitos de diversas causas e cada vez mais também por causa das alterações climáticas em curso, drama “que a crise mundial causada pela pandemia da Covid-19 exacerbou”[1]. O ponto de partida do Papa é o ícone da fuga da Sagrada Família para o Egito, em que “o menino Jesus experimenta, juntamente com seus pais, a dramática condição de deslocado e refugiado marcada por medo, incerteza e dificuldades”. Em cada um dos deslocados do nosso tempo “está presente Jesus, forçado – como no tempo de Herodes – a fugir para Se salvar. Nos seus rostos, somos chamados a reconhecer o rosto de Cristo faminto, sedento, nu, doente, forasteiro e encarcerado que nos interpela”. O Papa cita aqui a famosa passagem de Mt 25. Diante do escândalo de vermos tantos cristãos dos nossos países afluentes a destilarem um discurso de ódio e rejeição contra quem “foge da fome, da guerra e doutros perigos graves, em busca da segurança e duma vida digna para si e para as suas famílias” – recordo o ex-Ministro do Interior italiano a fazê-lo com o terço na mão -, não esqueçamos a advertência de Cristo: “Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25, 45).

Este ano, o Papa Francisco pretendeu que a Mensagem que habitualmente escreve para assinalar este Dia chamasse à atenção para “o drama dos deslocados dentro da própria nação” em virtude de violências e conflitos de diversas causas e cada vez mais também por causa das alterações climáticas em curso, drama “que a crise mundial causada pela pandemia da Covid-19 exacerbou”.

Francisco tem convidado a que vejamos no rosto de cada deslocado do nosso tempo não apenas, porém, o rosto de Cristo, mas o nosso próprio rosto, o meu também. “Somos todos migrantes”, de um modo ou de outro, é a mensagem com que nos interpela. Cada um de nós tem nos seus genes uma história de migração, temporalmente mais remota ou mais próxima. Como Francisco bem sabe, filho de imigrantes italianos que partiram ainda crianças para a Argentina. Como eu sei, neto e bisneto de portugueses que migraram para Moçambique – nascidos em Lisboa ou próximo, mas cujos antepassados tinham sido, com a linguagem de hoje, deslocados internos por motivos económicos e vindos quase todos do Norte do país. Ou como disse no dia 12 de agosto, em Fátima, D. José Traquina, bispo responsável em Portugal pela pastoral das migrações: “Como cristãos, manifestemos capacidade de acolhimento e não cultivemos sentimentos que não correspondem à nossa matriz cristã de fraternidade universal. Os estrangeiros são uma necessidade e um bem para Portugal, não para serem explorados ou mal tratados, mas acolhidos e protegidos com a mesma respeitabilidade que desejamos para os portugueses que vivem em qualquer outro país”.

O Papa acrescenta agora aos quatros verbos por ele introduzidos na Mensagem para esta mesma celebração em 2018 – acolher, proteger, promover e integrar – , já bem assumidos pela pastoral das migrações em todo o mundo, outros “seis pares de verbos que traduzem ações muito concretas, interligadas numa relação de causa-efeito”. São eles: conhecer para compreender; aproximar-se para servir; escutar para reconciliar-se; partilhar para crescer; coenvolver para promover; e colaborar para construir. Estes verbos estão também na base da campanha de preparação para a celebração do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado que a Secção Migrantes e Refugiados da Santa Sé está a promover.

O Papa acrescenta agora aos quatros verbos por ele introduzidos na Mensagem para esta mesma celebração em 2018 – acolher, proteger, promover e integrar – , já bem assumidos pela pastoral das migrações em todo o mundo, outros “seis pares de verbos que traduzem ações muito concretas, interligadas numa relação de causa-efeito”.

Termino com as palavras do próprio Papa a comentar apenas dois desses pares de verbos, esperando que vos tenha despertado o interesse pela leitura da Mensagem na sua integralidade:

– “É preciso conhecer para compreender. O conhecimento é um passo necessário para a compreensão do outro. (…) Frequentemente, quando falamos de migrantes e deslocados, limitamo-nos à questão do seu número. Mas não se trata de números; trata-se de pessoas! Se as encontrarmos, chegaremos a conhecê-las. E conhecendo as suas histórias, conseguiremos compreender. Poderemos compreender, por exemplo, que a precariedade, que estamos dolorosamente a experimentar por causa da pandemia, é um elemento constante na vida dos deslocados”.

– “Para reconciliar-se é preciso escutar. (…) O amor, que reconcilia e salva, começa pela escuta. No mundo de hoje, multiplicam-se as mensagens, mas vai-se perdendo a atitude de escutar. É somente através da escuta humilde e atenta que podemos chegar verdadeiramente a reconciliar-nos. Durante semanas neste ano de 2020, reinou o silêncio nas nossas ruas; um silêncio dramático e inquietante, mas que nos deu ocasião para ouvir o clamor dos mais vulneráveis, dos deslocados e do nosso planeta gravemente enfermo. E, escutando, temos a oportunidade de nos reconciliar com o próximo, com tantas pessoas descartadas, connosco e com Deus, que nunca Se cansa de nos oferecer a sua misericórdia”. Ámen, assim seja!

[1]Segundo os últimos dados publicados pelo Internal Displacement Monitoring Centre (IDMC, 2020), registaram-se em 2019 em todo o mundo 33,4 milhões de novos deslocados internos. Destes, 8,5 milhões foram forçados a deixar a sua casa devido a conflitos de vária ordem, enquanto 24,9 milhões o tiveram de fazer por causa de desastres.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.