Uma nova linha de metro: da escola até à prisão

É muito mais cómodo não querer ver nem sentir, continuar no sofá a falar de discriminação, acusar os professores e escolas que tentam fazer diferente, em vez de os e as apoiar, acompanhar e ir corrigindo eventuais falhas.

Proponho uma visita a uma nova linha do metro do Londres: “School to Prison Line”. Talvez assim se possa voltar a pensar na urgência inadiável de uma maior justiça escolar.

No dia 23 de agosto passado, um grupo de jovens ingleses colocou no Metro de Londres (Nothern Line), em cima dos mapas com a descrição da linha e das estações, outros intitulados “School to Prison Line”. Estes mapas foram apresentados como um protesto contra o modelo escolar que “perde” todos os dias 35 jovens e contra o modelo de avaliação e certificação existente, o GCSE, tendo sido colocados no próprio dia da apresentação dos resultados obtidos nestas avaliações externas. Dizem eles, num texto colado ao lado, num grande cartaz: “Today is GCSE results day. While most pupils across the country are excitedly waiting for news about their future, thousands remain left behind. Every day, 35 pupils (a full classroom) are permanently excluded from school. Only 1% of them will go on to get the five good GCSEs needed to succeed. It is the most disadvantaged children who are disproportionately punished by the system. We deserve better. We are a group of South London students who believe in empathy not exclusion. We demand a more compassionate education system and a supportive approach to behaviour and discipline. And we demand schools are given the financial resources to make it possible.”

A linha proposta por estes jovens tem as seguintes estações (adaptando ao caso português): “ordem de saída da sala de aula”, “medida disciplinar corretiva”, “medida disciplinar sancionatória”, “exclusão temporária”, “exclusão permanente”, “escola especial”, “estabelecimento prisional para jovens” e, finalmente, “prisão” e “reincidência”, estações apresentadas em círculo fechado. Logo à saída desta “nova linha do metro”, após a estação relativa à “ordem de saída da sala de aula”, existe uma derivação para outra linha, mas que é apresentada como estando “definitivamente encerrada”, que é composta pelas estações “empatia”, “apoio” e “sucesso”.

Este movimento, que retoma algo já com tradição nos EUA, surge como uma contestação pública a uma escola obrigatória, seletiva e injusta. Ela é injusta sobretudo para com os que estão mais longe dos seus códigos culturais, os mais pobres e filhos dos mais pobres e dos menos escolarizados (os negros e os latinos são a grande maioria destes jovens, nos EUA), a viver geralmente em ambientes urbanos já de si parcialmente excluídos. Sem um diploma básico de estudos, a sua exclusão escolar constitui uma efetiva condenação.

A escola é injusta sobretudo para com os que estão mais longe dos seus códigos culturais, os mais pobres e filhos dos mais pobres e dos menos escolarizados (os negros e os latinos são a grande maioria destes jovens, nos EUA), a viver geralmente em ambientes urbanos já de si parcialmente excluídos.

Existe, de facto, cá como lá, uma violência escolar institucionalizada que se tende a administrar como a coisa mais natural e naturalizada do mundo. A cultura escolar dominante, que se diz democrática, não tem lugar para todos, é excludente. O primeiro passo consiste geralmente em colocar certos alunos “lá fora cá dentro”, colocando-os de lado, por vezes de modos muito “subtis”, ir dando ordens de saída da sala de aula (uma, três, dez e cem vezes), reprovando-os (uma, duas, cinco vezes no mesmo ano de escolaridade ou em anos diferentes), aplicando penas sucessivas (suspensões de um dia, três e doze dias), enviando certos alunos para currículos ditos “alternativos”, etc. etc.

Alguns resistem a toda a série de atropelos e maus-tratos escolares e lá continuam (apenas porque é obrigatório andar na escola até aos 18 anos!) e outros acabam mesmo por abandonar o local, habitualmente com agrado para ambas as partes. Esta violência institucionalizada, colada a uma obrigatoriedade normativa, a uma rigidez curricular insuportável, a uma incompetência manifesta em lidar com o que é culturalmente diferente, é um facto e é óbvio que gera violência e pode contribuir para este caminho “da escola para a prisão”, certamente um caminho que não foi apenas a escola que desenhou, mas onde colabora tantas vezes despudoradamente.

A heterogeneidade que passou a existir entre os alunos é tida entre nós como o grande problema escolar, diz-nos muita investigação. Esta heterogeneidade, que é apenas a consequência lógica da democratização e da edificação de um sistema de igualdade de oportunidades, que deveria ser tomada apenas como um “novo” ponto de partida, acaba por constituir o principal problema e o nó cego! É óbvio que a heterogeneidade e a diversidade cultural só podem ser consideradas como o problema porque o modelo escolar seletivo e injusto do passado, destinado a uma elite da sociedade, como o era entre nós, antes do 25 de abril, continua a ser o referente principal de muitos professores, escolas e políticos. Alimentam aliás uma enorme nostalgia pela escola de antigamente!

Aqui reside a causa mais importante da absoluta rigidez escolar e da incapacidade de realizar uma gestão curricular profissionalmente inteligente, em cada contexto e situação. É sempre mais fácil selecionar, separar, colocar fora do trilho principal, repetindo sempre o mesmo e para os mesmos, e seguir em frente. Não só as políticas públicas de educação nunca resolveram institucionalmente esta questão, desde 1974 (ex. como lidar com justiça e equidade com quem rejeita esta escolarização?), como continua a ser essa a lógica dominante, nas práticas de algumas escolas e professores, que preferem afastar essa realidade para fora dos seus olhos do que enfrentá-la, com toda a crueza e coragem, erguendo seriamente outros modos de ensinar e fazer aprender (que não se compadecem com uns apoiozinhos pedagógicos, que custam uma fortuna ao país e que servem geralmente para repetir e validar o já que está determinado: alguns cidadãos estão a conspurcar a escola da democracia e têm de ser afastados (ainda que tenham de continuar matriculados, para fazer de conta, até aos 18 anos!).

Há entre nós uma opacidade e uma falta de verdade que ganham aos pontos à transparência e à confrontação com a realidade concreta, nua e crua. Isso mesmo justifica que muitos pensadores das políticas públicas de educação continuem a dizer que o mais importante é oferecer o mesmo tipo de currículo a todos, do mesmo modo e ao mesmo tempo. Qualquer diferenciação efetiva é logo catalogada de estigmatização e de discriminação. O sistema tritura e maltrata milhares de alunos, sempre os mesmos, os mais pobres, os mais afastados do modelo cultural dominante, os pessoal e socialmente mais vulneráveis. Mas isso é visto como um mal menor, praticado em nome de um suposto bem maior, como um custo da democratização, e lá continuam a encher a boca com a equidade e as novas pedagogias. Os fins justificam os meios…

Não se aceita educar de modo realmente diverso quem é realmente muito diferente, em nome, dizem, da injustiça que seria impedi-los de aceder ao “conhecimento poderoso” (M. Young), ao currículo prescrito, dentro da sala de aula e no exato tempo determinado. E, de tão críticos que são, estes críticos não percebem que o “conhecimento poderoso” é também o conhecimento do poder dominante, e que é normalizador, anula muitos talentos e arrasa muitas diferenças culturais. Não percebem que a escola pública está a ser usada, com o seu apoio, para rejeitar os que menos se adaptam aos seus códigos e às suas regras, à sua organização, como acontece todos os dias entre nós (e tenho relatado aqui nestas crónicas). Esta escola, que sendo para todos, poderia e deveria ser também para cada um/a (sendo, aí sim, verdadeiramente poderosa), poderia e deveria ser um instrumento, se bem articulado com outros, para concretizar essa promessa central das democracias que é a igualdade de oportunidades.

Tem de haver uma resposta-proposta para todos e para cada um(a). Isso é possível, sabe-se como, então tem mesmo de se fazer (pois, ao prometermos politicamente o que não queremos realmente fazer, estamos a convocar os populismos a crescer!).

Não basta ao sistema escolar cumprir a lei, tem de ser justo. E não o é para milhares de jovens. Entre nós, estes pouco se manifestam nas estações de metro, mas manifestam-se bem na indisciplina, na revolta violenta, na delinquência, na marginalidade, no consumo de drogas, na exclusão social como modo de vida

Não basta ao sistema escolar cumprir a lei, tem de ser justo. E não o é para milhares de jovens. Entre nós, estes pouco se manifestam nas estações de metro, mas manifestam-se bem na indisciplina, na revolta violenta, na delinquência, na marginalidade, no consumo de drogas, na exclusão social como modo de vida. Só não vê quem não quer ver, ainda que pense muito sobre o que vê, pois não basta pensar, como muito bem dizem os jovens de Londres (está lá tudo, problema e solução), é preciso ter compaixão, amar estas realidades duras que são a pobreza e a exclusão e querer dar-lhes uma luta sem tréguas, mas uma luta a sério, anos a fio, socialmente participada e fortalecida. É muito mais cómodo não querer ver nem sentir, continuar no sofá a falar de discriminação, acusar os professores e escolas que tentam fazer diferente, em vez de os e as apoiar, acompanhar e ir corrigindo eventuais falhas. De facto, é muito mais fácil continuarem sentados a proclamar o bendito acesso ao “conhecimento poderoso”! Sempre foi mais cómodo proclamar uma vaga ideologia de justiça do que ser mesmo justo para com quem temos realmente diante dos nossos olhos.

Um dia após outro, subtilmente, os declarados inensináveis são expulsos da mesa do banquete; uma dia após outro, subtilmente, desmorona-se a escola da democracia e da igualdade de oportunidades. É sempre assim, um dia após outro, que se degrada uma instituição, uma democracia e uma civilização.

Como diziam Simon & Garfunkel, em Sound of Silence, “the words of the prophets are written on the subway walls”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.