Em aulas de introdução à “ciência lúgubre”, costumo dizer que “no Céu não há Economia”. A Economia trata das escolhas que visam lidar com a sensação crónica de escassez material, e de como são orientadas por possibilidades, preferências e incentivos; no Céu não há Economia porque não pode haver qualquer sensação de escassez: se até do pecado original – a escassez de Deus – estamos livres, muito menos sentiremos qualquer escassez do não-Divino. Enquanto Igreja, cabe-nos analisar se a evolução da economia vai aproximando a terra do Céu, nos vai aproximando do Reino de Deus – esse Reino de justiça e paz.
Os mais recentes indicadores sobre a economia portuguesa parecem benignos. Há dias soube-se que o produto bruto gerado em Portugal terá aumentando 2,7 por cento em 2017, o que consolida crescimentos positivos registados já desde a segunda metade de 2013; e que a taxa de desemprego terá baixado para 8,1 por cento no último trimestre de 2017, continuando a sistemática redução desde os 16 por cento de 2013.
Antes de mais, convém ver estes resultados em perspectiva. Apesar dos progressos, o nível do nosso produto per capita mal aumentou nos últimos 20 anos e continua em menos de 60 por cento da média europeia; a taxa de subutilização da população potencialmente trabalhadora – desempregados, trabalhadores a tempo parcial, inativos disponíveis que não procuram emprego – ascende ainda hoje a 16 por cento, cerca de 870 mil pessoas.
Mais preocupante é a sustentabilidade da retoma. Sendo certo que a dívida externa diminuiu pelo terceiro ano consecutivo, em resultado de algum desendividamento de famílias e empresas, a dívida líquida de portugueses face a estrangeiros ascende hoje a 93 por cento do PIB. O Estado continua a não contribuir para a poupança e as próprias famílias e empresas poupam pouco. Historicamente, quando o poder de compra duma parte importante dos portugueses aumenta – como acontece hoje, com reposições de vencimentos num contexto de crédito abundante e barato – as importações e o endividamento externo disparam: foi assim que de uma dívida externa nula há 20 anos chegámos à crise financeira de 2010 e ao consequente programa de assistência de 2011-14. Por outro lado, a aparente contenção do défice do Estado assenta no congelamento de despesas públicas essenciais que será a prazo insustentável.
Igualmente preocupante é a (in)justiça da retoma. No cômputo dos últimos 20 anos, os principais indicadores agregados mostram uma redução da desigualdade. Contudo, desde 2009 esses indicadores aumentaram ou mantiveram-se; Portugal é dos países mais desiguais da Europa, o que é particularmente grave porque o nosso produto per capita é muito mais baixo do que a média. Estudos mais finos (“Desigualdade do rendimento e pobreza em Portugal – as consequências sociais do programa de ajustamento”, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), detetam que a crise terá afetado alguns segmentos da sociedade de forma muito desigual: terão sofrido particularmente, por exemplo, as famílias mais pobres e as mais ricas, famílias com pais jovens pouco qualificados e crianças, jovens com elevados níveis de escolaridade. Hoje, as perspetivas de emprego e de salário continuam mais desfavoráveis em alguns segmentos da população, como jovens qualificados e profissionais com qualificação média mas experiência elevada, que seria justo e eficiente convocar para a produção. O acima referido elevado número de subutilizados é outro sintoma de desperdício de recursos e de injustiça – sendo em grande medida pessoas com capacidade e necessidade para um emprego a tempo integral, ou que o desejando já se encontram desencorajadas de o procurar. Finalmente, é preocupante a injustiça inter-geracional: as gerações futuras terão o ónus de pagar os impostos da dívida pública acumulada nas últimas décadas e de reembolsar a dívida face ao exterior; em ambos os casos, pagando por uma sobre-utilização de recursos de que pouco beneficiaram.
É certo que, em parte, estas insustentabilidades e injustiças não decorrem de factores específicos de Portugal: inscrevem-se na “estagnação secular” que o mundo desenvolvido enfrenta neste momento.
Em tempos de estagnação, tem havido a tentação de se reforçar a redistribuição. Numa abordagem bíblica, no fundo levar à letra a “comunidade modelo”, descrita em At 2,42-47, de crentes que possuiam tudo em comum, vendiam terras e distribuiam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um.
Sabe-se hoje que estas primeiras comunidades de Jerusalém desapareceram cerca do ano 60, incapazes de sobreviver materialmente. Essa tem sido, aliás, uma constante histórica: sociedades que menosprezam as possibilidades, as preferências individuais e os incentivos às boas decisões, têm sido incompatíveis com a eficiência na afetação dos recursos. Estará a Economia condenada a ser uma “ciência lúgubre”? Estaremos condenados ao dilema eficiência ou equidade? Estaremos condenados a viver em regimes económicos que, mesmo fomentando a igualdade de oportunidades (raramente assegurada!), promovem a eficiência económica à custa de injustiça social?
São bem conhecidos os resultados das tentativas de construção de alternativas ao capitalismo, fundadas em filosofias sociais do século XIX e implementadas em alguns países no século XX. Modelos que alguns justificariam numa leitura utópica de At 2,42-47, mas que são invariavelmente inconsistentes com a liberdade patente naquele modelo de partilha voluntária; modelos que, tentando fazer céus na terra, nela apenas criaram infernos.
Ao nível teórico, a recente corrente da “Economia da Comunhão” tem tentado reconciliar Economia e Espiritualidade (por exemplo, “A ferida do outro – Economia e relações humanas”, de Luigino Bruni). Contudo, esta corrente não gerou ainda propostas concretas de reforma do sistema económico, pelo menos não suficientemente convincentes para conquistar apoios entre economistas e políticos.
Como ir colaborando, então, na construção do Reino de Deus por dentro do sistema vigente? Haverá uma abordagem bíblica compatível com o paradigma económico que hoje temos perante nós? Sim, há uma resposta em Jesus. Na Parábola dos talentos (Lc 19,12-27) o Senhor premeia os servos que multiplicam os seus talentos, à proporção dos recebidos, e condena o servo temeroso que esconde o único talento recebido: Jesus exorta-nos, assim, a não ter medo e a usar os dons recebidos de Deus para o seu serviço, assumindo riscos pela causa do Reino de Deus.
A ênfase deve estar, assim, na produção: o crucial é que se criem condições para que cada um faça render ao máximo os seus talentos. Esse crescimento material será, por definição, máximo e sustentável. Cabe aos Homens de boa vontade, e em primeira linha a nós que somos Igreja, trabalhar continuamente para que seja justo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.