São Tomás e os telemóveis

No uso dos ecrãs, como pode a Graça de Deus aperfeiçoar a atual natureza das coisas? Como é que a Graça me pode ajudar a melhorar nisto, partindo da atual realidade?

” – Tomás, Tomás, lá vai um boi a voar!”
O futuro santo olhou, e todos se riram dele. Disse então o pequeno Tomás: ” – mais vale um boi voar, do que um bom cristão mentir!”.
O meu pai contava esta história quando algum de nós mentia. Nem sabe o impacto que ela teve em mim. Gosto da magnanimidade do santo em chamar “bom cristão” a quem com ele gozou.

Vão começar as férias de verão e os filhos vão ficar ainda mais agarrados aos telemóveis e ecrãs. A experiência de anos anteriores diz-nos isso. Este ano interessa-me afrontar este tema. Há muita mentira na nossa utilização dos ecrãs! Por onde começar? A minha filha de 16 anos anunciou-me há dias que decidira desinstalar o Tik Tok depois de ter feito um trabalho escolar sobre aquela rede social. Passados uns dias voltou a instalar, “só para ver umas coisas” que lhe tinham escapado… Foi um passo. É preciso dar passos. Telemóveis e ecrãs tornaram-se tão omnipresentes nas nossas vidas que será difícil ansiar uma mudança que não seja feita de pequenos passos. Ou talvez não, talvez tenhamos mesmo de ser radicais. Como continuar esta senda? O mote é claro: é preciso ‘emagrecer’ a excessiva utilização dos ecrãs. É preciso ir vencendo a mentira que há aqui.

Telemóveis e ecrãs tornaram-se tão omnipresentes nas nossas vidas que será difícil ansiar uma mudança que não seja feita de pequenos passos. Ou talvez não, talvez tenhamos mesmo de ser radicais. Como continuar esta senda? O mote é claro: é preciso ‘emagrecer’ a excessiva utilização dos ecrãs. É preciso ir vencendo a mentira que há aqui.

O santo de Aquino tem uma máxima de que gosto muito. “A Graça não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza”. Às vezes dou comigo a verificar a sua aplicação em diversas áreas da vida: “A Graça não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza”. No uso dos ecrãs, como pode a Graça de Deus aperfeiçoar a atual natureza das coisas? Como é que a Graça me pode ajudar a melhorar nisto, partindo da atual realidade?

Não pode fazer bem a ninguém estar tantas horas em frente a um ecrã: smart tv, telemóvel, tablet ou o que for. É excessivo o tempo ali perdido com tanto que não interessa. No mundo de hoje, em que tanto se prioriza a saúde mental, a excessiva utilização dos ecrãs pode prejudicá-la gravemente*. Para muitos pais, o que desperta mais repulsa é que os filhos vejam pornografia. E percebe-se: é talvez a perversão mais concreta e fácil de detetar.

São Tomás estabeleceu uma hierarquia da gravidade dos pecados capitais ou mortais: 1° Soberba, 2° Inveja, 3° Ira, 4° Preguiça, 5° Avareza, 6° Gula, 7° Luxúria. Nesta hierarquia, o Doutor Angélico não tinha nada de anjinho. Ele sabia que as grandes faltas na área sexual são más mas são umas entre outras, tão más ou piores. Veio depois a teologia dos séculos seguintes, o pessimismo protestante e o moralismo jansenista que quase transformou a fé católica num grande sistema (sexualmente) moralizante.

A pornografia merece intervenções específicas** mas arrisco dizer que uma preocupação exclusiva com a pornografia pode esconder, ou obviar, perversões mais graves e subtis no uso dos ecrãs. Mais subtis porque mais difíceis de detetar: a soberba, o orgulho e a vaidade, a inveja e a ira – que ecrãs e redes sociais tanto têm exacerbado – são demasiado esquecidas. Sabemos que nas redes sociais e nos ecrãs em geral a comunicação é quase sempre parcial e tendenciosa. As conversas e comentários digitais azedam rapidamente. Reina um estilo pomposo e orgulhosamente auto afirmativo. Impera uma espécie de feira de vaidades e auto promoções, na qual muitos até nem entrariam se fosse fora da ‘protegida’ bolha digital. O sensacionalismo dá o tom a discursos emocionalmente manipuladores. Inventam-se e proliferam polémicas mesquinhas e polarizadas. Fazem-se a toda a hora juízos rápidos e extremados. Os efeitos negativos são de vária ordem: invejas e ódios, anorexias e ansiedade e, certamente, elevados prejuízos de ordem espiritual.

Os efeitos negativos (das redes sociais) são de vária ordem: invejas e ódios, anorexias e ansiedade e, certamente, elevados prejuízos de ordem espiritual.

Todos caímos, mais ou menos, em algumas destas ‘ciladas digitais’. Eu caio. É preciso fazer alguma coisa: desmascarar a mentira que há aqui! Cada pessoa e cada família terão de encontrar as melhores formas de lidar com isto. Começam a surgir vários tipos de associações e movimentos que podem dar uma ajuda***. Gosto pouco de receitas educativas coletivas, mas algumas dicas de quem reflete podem ajudar a tomar melhores decisões pessoais. Ideal seria que cada um de nós chegasse a ter uma regra de vida no uso de ecrãs e telemóveis: a sua forma própria de os utilizar, retendo o positivo e evitando o que não interessa. O discernimento há-de ser permanente. Que passo conseguiria dar hoje?

E os filhos? Na educação deles o tema ganha contornos prioritários: O que é que os ecrãs e as redes sociais estão a fazer ao caráter dos nossos filhos? Será que os estão a transformar em seres humanos orgulhosos, altivos, vaidosos e invejosos? Como aplacar isto? Se os meus filhos até nem veem pornografia na internet, então posso estar descansado? Não me parece.

O que é que os ecrãs e as redes sociais estão a fazer ao caráter dos nossos filhos? Será que os estão a transformar em seres humanos orgulhosos, altivos, vaidosos e invejosos? Como aplacar isto? Se os meus filhos até nem vêm pornografia na internet então posso estar descansado? Não me parece.

Regresso ao santo dominicano. Uma das suas doutrinas, radicada nos filósofos gregos, é a das causas primeira e segundas. “Causa primeira” é Deus. “Causas segundas” somos nós, Suas criaturas, que aspiramos à causa primeira e para ela podemos orientar outras criaturas. Esta doutrina dá uma tremenda responsabilidade aos seres humanos e fundamenta os vários tipos de mediações: dos santos, das boas autoridades, dos pais e mães zelosos.

Como ser boas “causas segundas” neste tema da utilização dos ecrãs? Como ser modelos para os nossos filhos e começarmos nós por dar passos concretos de ‘emagrecimento digital’? Como os educar para lidarem bem com os ecrãs e saberem pedir perdão e recomeçarem melhores depois de os usarem mal? Como educar os nossos filhos para evitarem a luxúria e o vício da pornografia na internet? Como educar para prevenir a inveja e saber lidar com a feira de vaidades nas redes sociais? Como evitar que a utilização dos ecrãs gere adolescentes soberbos e manipuladores que acham que sabem tudo porque têm acesso a toda a informação? Como proteger as filhas de inúteis comparações que podem gerar anorexia e outros distúrbios alimentares? Como fomentar o gosto pela leitura quando tudo é oferecido de bandeja e resumido nas imagens dos ecrãs? Como evitar que uma catadupa diária de notícias negativas intoxique a cabeça dos nossos filhos? Como ensinar os mais polemistas que a verdade é humilde e quando se mistura com fel e ódio deixa de ser verdade? Como percorrer este caminho educativo sem entrar numa cruzada alarmista e obsessiva que desmobiliza qualquer um? Como fazê-lo de forma inteligente e paciente, com muita determinação e sem azedume?

Como ser modelos para os nossos filhos e começarmos nós por dar passos concretos de ‘emagrecimento digital’?

Nos recentes concertos em Coimbra, os Coldplay pediram a todos para desligarem os telemóveis numa das músicas, para a saborearem melhor. Muitos não conseguiram fazê-lo, mas ficaram tocados com aquele pedido, e a pensar nisso. A minha filha ficou.

Há poucos dias, o organismo do Vaticano para a comunicação publicou um longo documento com muita reflexão sobre formas de presença e melhor utilização das redes sociais****. Numa leitura demasiado rápida, retive do ponto 80: “seguindo a lógica do Evangelho, tudo o que devemos fazer é suscitar uma pergunta, para despertar a procura. O resto é a obra misteriosa de Deus.”

Conta-se que perto do final da sua vida, São Tomás teve uma visão mística de grande intensidade. Depois dela, o Doutor da Igreja terá dito que tudo o que antes havia escrito – toda a sua imensa teologia sistemática e racional – era “palha” perante o que então vira, na presença de Deus.

Conceptualizar e arrumar ideias pode ser útil, mas não muda grande coisa. Neste tema da utilização dos ecrãs, importa refletir e ganhar argumentos para decidir bem. Mas precisamos sobretudo da Graça, de uma grande conversão do coração, para aperfeiçoarmos a nossa natureza e crescer nisto. Só a Graça pode operar mudanças boas e grandes em nós. Sem a Graça, podemos fazer muitos diagnósticos e sistematizações, mas não temos força para mudar nada. Precisamos da luz e da força de Deus para mudar. Porque a nossa relação com os ecrãs precisa mesmo de mudar. A minha precisa.

 

* por exemplo:
https://observador.pt/programas/porque-sim-nao-e-resposta/redes-sociais-negativas-na-saude-mental-de-jovens/

** por exemplo:
www.daoclique.pt
www.datescatolicos.org/index.php?id=544&details=z4BaI21J#

 

*** por exemplo:
www.protectyoungeyes.com
www.screenagersmovie.com
https://screenstrong.org/

“Como largar o telemóvel: Manual de desintoxicação”, livro de Catherine Price

 

**** documento integral:
https://www.vatican.va/roman_curia/dpc/documents/20230528_dpc-verso-piena-presenza_pt.html

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.