“Que entre vós não seja assim…”

Precisamos urgentemente de nos convertermos a este caminho de serviço e humildade, de afastar toda a tentação de converter a autoridade em poder e de toda a autorreferencialidade que nos encerra face ao mundo e aos seus apelos.

João abre a narrativa da Páscoa de Jesus com o episódio do lava-pés. O modo como a inicia sempre me impressionou: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo. 13,1). Na verdade, a sua morte e ressurreição não são senão o completar da sua passagem: a passagem pela condição humana, na sua grandeza e na sua fragilidade, e esse passar da mesma condição humana da morte para a vida plena de Deus. A nova Páscoa é a da liberdade que nasce da morte vencida porque a vida é dada por inteiro, diz-se na entrega até ao fim. E tudo acontece sob o signo do amor, desse amor que não desiste do Homem mas antes lhe assegura: “Eu estarei sempre contigo!”, mesmo no abismo e na vertigem do aparente sem sentido, da violência e da morte.

“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo. 13, 1).

É interessante que a liturgia cristã tenha colocado este texto no centro da celebração de Quinta-Feira Santa, no dia do memorial da última ceia que Jesus toma com os discípulos, onde faz do pão e do vinho partilhados o sinal da sua vida dada, sempre presente como alimento nos irmãos e irmãs que se reúnem em seu nome na esperança dos novos céus e da nova terra. Na primeira leitura desse dia, recorda-se por isso a ceia pascal judaica, tomada à pressa, relembrando a urgência da partida, a condição essencial dos crentes como peregrinos. E Paulo, na 1ª Carta aos Coríntios, dá-nos o mais antigo testemunho dessa memória recebida e transmitida dos gestos e palavras de Jesus, nessa Ceia memorável que, como o dom do seu corpo, se quer abrir a todos.

O gesto e o dia surgem-nos associados também, na teologia cristã, à instituição do ministério ordenado. Tal ligação é por vezes lida em clave clerical, fundando na iniciativa do próprio Senhor Jesus uma distinção, que se pretende estruturante, entre os leigos e aqueles que, na comunidade eclesial, têm o múnus de presidir, governar e ensinar. Sobretudo, é reivindicado como gesto que, por distinguir, também separa e exclui, ao mesmo tempo que sanciona uma autoridade, um  monopólio na distribuição dos bens sagrados e na mediação entre a comunidade e o próprio Deus.

Tal ligação é por vezes lida em clave clerical, fundando na iniciativa do próprio Senhor Jesus uma distinção, que se pretende estruturante, entre os leigos e aqueles que, na comunidade eclesial, têm o múnus de presidir, governar e ensinar.

Muita desta mentalidade, reforçada ao longo dos tempos medievais e da reforma tridentina, veio a ser definitivamente posta em causa, como sabemos, pelo Concílio Vaticano II. Ao propor um entendimento da Igreja como povo de Deus, fundado na comum dignidade baptismal dos seus membros e na universal vocação de todos a uma vida plena, aberta ao dom de Deus e comprometida na transformação do mundo, sugeria, na verdade, uma irreversível inversão de perspectiva, não já numa lógica institucional mas existencial, não a partir de cima mas de dentro. Daí decorria todo um entendimento outro, tanto do papel de (todos os) leigos como actores e participantes na construção da Igreja e na transformação do mundo, como do ministério ordenado, olhado agora a partir da dimensão do serviço, promotor de comunhão, capaz de escuta e de diálogo com o mundo, aberto às esperanças e dificuldades de todos, numa dinâmica de acolhimento, cuidado e compaixão.

Os acontecimentos últimos em torno dos abusos no interior da Igreja, sexuais e outros, nas suas múltiplas dimensões – das vítimas aos abusadores até à tibieza, desconcerto e mesmo silêncio das hierarquias mas por vezes também de muitos leigos e das suas comunidades – mostram como muito se liga ainda com um acentuado clericalismo, com estruturas frágeis de participação e uma concepção da vida cristã e da vida das comunidades e da Igreja ainda muito afastada de uma ética efectiva do cuidar. Os paradigmas institucionalistas e paternalistas de poder favoreceram sempre a obediência e o silêncio em detrimento da participação e da reflexão construtiva.

Os paradigmas institucionalistas e paternalistas de poder favoreceram sempre a obediência e o silêncio em detrimento da participação e da reflexão construtiva.

O gesto de Jesus do lava-pés é, por isso, mais actual do que nunca. Desde logo, porque Ele próprio, sendo “Mestre e Senhor”, se despe da sua autoridade, deixa de lado o manto, para se ajoelhar perante os discípulos, como os escravos faziam aos seus senhores. No modo como explica aos seus tão escandaloso gesto, vem-nos à memória um outro diálogo, colocado noutro contexto, onde Jesus também inverte as lógicas do poder e da autoridade para afirmar o primado da humildade e do serviço: “Sabeis que os governadores das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós seja o seu servo” (Mt. 20, 25-27). Num caso e noutro, Jesus apresenta-se como o modelo, aquele que veio para servir e não para ser servido (Mt. 20, 28), aquele que lava os pés aos seus discípulos, ou, como Paulo relembra na carta aos Filipenses, aquele que se despojou da sua condição divina para assumir a nossa condição, até à morte de cruz.

O gesto de Jesus do lava-pés é, por isso, mais actual do que nunca. Desde logo, porque Ele próprio, sendo “Mestre e Senhor”, se despe da sua autoridade, deixa de lado o manto, para se ajoelhar perante os discípulos, como os escravos faziam aos seus senhores.

Se o seu gesto se liga e funda os diversos graus de serviço ministerial que a Igreja foi definindo para as suas comunidades, ele também deve inspirar o modo como eles devem ser entendidos e exercidos. Precisamos urgentemente de nos convertermos a este caminho de serviço e humildade, de afastar toda a tentação de converter a autoridade em poder e de toda a autorreferencialidade que nos encerra face ao mundo e aos seus apelos. Precisamos de uma Igreja, precisamos todos como Igreja, de perceber a força deste ajoelhar perante cada um dos nossos irmãos e irmãs, de lhes dizermos como são preciosos e únicos aos olhos de Deus, como é grande a sua dignidade, e como é bela a nova trazida por Jesus, aquele que abriu e abre aos nossos pés caminhos novos de liberdade e plena humanidade. Precisamos, sem hesitações, de coração contrito, de o dizer e fazer sentir àquele e àquelas que ofendemos. Precisamos de pedir, como Jesus nessa Ceia, para que o Pai guarde aqueles e aquelas que acreditam nele, para que não se percam nem percam a força de ser sal e luz do mundo. Precisamos de nos escutarmos mutuamente para discernirmos os caminhos pelos quais Deus nos chama, como Igreja e irmãos uns dos outros, a sair da desesperança e da noite para a aurora da manhã pascal. Que as dores do momento presente e as feridas que nos maceram sejam o caminho, como em Jesus, para passar para uma vida nova, um modo diferente, mais fraterno, de sermos cristãos, uns com os outros.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.