Procurai, pobres, o Senhor…

Precisamos de redescobrir o caminho da humildade e da mansidão, da misericórdia e da compaixão, até aceitarmos o risco das lágrimas, da sede e da perseguição por amor da justiça e da paz.

A Escritura coloca-nos repetidas vezes perante a figura do pobre, e elogia aqueles que aceitam não ser completos senão com os outros e com Deus. Aqueles que se dispõem a fazer caminho, a arriscar dar lugar à sede que nos coloca no dinamismo da procura. Não foi precisamente pelos pobres que Jesus iniciou o Sermão da Montanha, como se aí residisse o coração de toda a possibilidade de bem-aventurança? Sentimo-nos por vezes tão pequenos, capazes de tão pouco, sobretudo quando a vida nos envolve no cadinho da tribulação, do sofrimento, das perdas difíceis ou do desamor da traição. Somos efetivamente pobres, e fazemos não poucas vezes a experiência da nossa limitação e da nossa fragilidade.

O Evangelho, na parábola do Bom Samaritano, abre-nos para a descoberta de que somos companheiros de caminho uns dos outros, irmãos na fragilidade e no dom, chamados a ser sinal de misericórdia, um bálsamo nos pequenos gestos de ternura e de bondade. S. Paulo fala mesmo, na Carta aos Romanos, de que nos devemos “carregar uns aos outros”. Quem fez a experiência de peregrinar a pé sabe que há alturas em que é preciso carregar outros, para que todos possam chegar ao termo desejado. E, no dia seguinte, pode ser aquele que foi carregado a ser chamado a apoiar o outro que sente mais dificuldade em continuar o caminho.

Mais ainda, na parábola do Bom Samaritano, é o próprio Deus que pode ser representado nesse homem que se compadece do seu semelhante que jaz ferido na beira do caminho. Deus vem ao encontro dos homens e mulheres, de cada um de nós, seus filhos e filhas, para nos dizer que não estamos sós, que ele abre sempre perante os nossos pés os caminhos da esperança; que a dor, o sofrimento, o desalento, o ódio, o sem sentido, não têm e não terão a última palavra. Jesus é o grande sinal desta presença, deste Deus que se abeira ao ponto de se fazer um de nós, de montar a tenda entre a Humanidade peregrina, e que não conhece fronteiras nem se poupa a esforços para chegar a todos, mesmo aos que estão nas margens, maltratados pela vida, colocados fora pelas normas sociais, religiosas ou morais, mas que continuam à procura e que não calam a sua sede.

Maria entendeu bem isso, ao assumir-se, ela própria, como uma serva, parte dos pobres de Javé que o Senhor escuta e enche de bens. Ela reconhece quanto Deus fez nela e na história do seu povo, mostrando-se misericordioso, num amor que não desiste de cada um e de cada uma, de ninguém. Também Jesus estremece de alegria porque o coração de Deus é revelado antes de tudo aos pobres e pequeninos. E o seu caminho multiplica-se em encontros com aqueles e aquelas que, das margens, nos cimos das árvores, descidos por tetos das casas ou empurrados pela condenação dos outros, gritam por consolação e esperança.

Temos ouvido do Papa Francisco, repetidas vezes, o apelo a colocarmo-nos entre esses pobres e pequeninos. A que a Igreja se assuma de vez como um povo peregrino, nessa sinodalidade que não significa senão aceitar fazer caminho com todos e todas, sem conhecer fronteiras, sem severidade mas com misericórdia, como há muito lembrava S. João XXIII, assumindo e propondo o Evangelho como caminho de plena humanidade, ao jeito de Jesus. Tal como na parábola do Samaritano, a Igreja não se deve ficar por acolher aqueles que a procuram, mas sair ao caminho para com todos crescer em humanidade e ser ela própria fermento e sinal, parábola de uma efetiva comunhão.

O esforço da escuta mútua pedido pelo Papa merece atenção. Sobretudo porque este apelo não se dirige apenas à preparação imediata de um Sínodo, mas antes a uma conversão profunda, reequacionando os espaços, as formas e as circunstâncias mais propícias para a participação e a escuta de todos.

O esforço da escuta mútua pedido pelo Papa merece atenção. Sobretudo porque este apelo não se dirige apenas à preparação imediata de um Sínodo, mas antes a uma conversão profunda, reequacionando os espaços, as formas e as circunstâncias mais propícias para a participação e a escuta de todos. É um jeito de ser e de fazer que importa redescobrir, fundado na tradição viva da Igreja que muitas vezes identificamos indevidamente com estruturas cristalizadas e excessivamente clericalizadas. É um aceitar partir de novo para as margens, acolhendo e escutando a todos, reconhecendo nas suas procuras as nossas sedes, dificuldades e desalentos.

Talvez também por isso, e mais profundamente, este caminho exige conversão. Na senda dos pobres elogiados pela Escritura e colocados entre os primeiros bem-aventurados, precisamos de redescobrir o caminho da humildade e da mansidão, da misericórdia e da compaixão, até aceitarmos o risco das lágrimas, da sede e da perseguição por amor da justiça e da paz. É também o caminho da renúncia do autocentramento, da vingança, do desejo de poder e de posse.  E isto implica um repensar de opções, que nos compromete como pessoas e como cristãos. Seja para aceitar o risco de um caminho interior sério, que sempre nos coloca no “fio da navalha”, porque nos desinstala e convoca para o desconhecido, seja para abandonarmos as nossas ilusões de autossuficiência e de certezas indefetíveis.

Precisamos de reaprender a escutar. E a aceitar escutar todos os apelos que nos vêm dos mais diversos quadrantes. Só assim perceberemos e seremos capazes de discernir os sinais dos tempos – uma expressão tão cara ao Concílio e que parece hoje tão secundarizada ou limitada nas suas implicações… Só assim as nossas vidas e as nossas comunidades se poderão tornar lugares de hospitalidade, ao mesmo tempo capazes de acolher e de ir ao encontro dos outros, empenhadas na luta pela construção de um mundo mais justo e fraterno, que seja efetivamente uma casa para todos, sem com isso deixar de propor e convidar ao encontro pessoal com Deus, à experiência dessa “melhor parte” que a ninguém será tirada. Porque é ela que nos prepara para a luta e ao mesmo tempo nos assegura que a última resposta será sempre a do Amor e da Vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.