O Fundo Monetário Internacional (FMI) acaba de concluir a análise da situação económica de Portugal em 2019 e de apresentar o respetivo relatório. Uma das conclusões importantes é que as famílias e as empresas não financeiras continuam a reduzir o seu endividamento (desde 2013) mas que os seus níveis de endividamento continuam elevados, quer por padrões históricos quer por padrões europeus. Este artigo é sobre a parte deste problema que diz respeito às famílias.
As famílias portuguesas fizeram um esforço grande de desendividamento desde a crise e o programa de ajustamento de 2010-14: a sua dívida agregada baixou de 95% do produto interno bruto (PIB) em 2009-12 para 70,6% em 2018. Contudo, continuam mais endividadas do que estavam em 2000 e do que estão hoje as famílias da Área do Euro (60% do PIB).
O problema, como diz o FMI, é que desta forma as famílias portuguesas continuam expostas a choques negativos do seu rendimento ou a aumentos das taxas de juro: como poderão manter os seus níveis de consumo se vier outra recessão ou se as taxas de juro voltarem a valores mais normais?
Para que a dívida das famílias diminua é necessário aumentar a sua taxa de poupança. Conforme se pode ver no relatório do FMI, a taxa de poupança das famílias encontra-se abaixo dos seus padrões históricos, tendo registado uma tendência decrescente desde 2009, de cerca de 8% do PIB nesse ano (sensivelmente a taxa média na Área do Euro) para 3,2% do PIB em 2017.
Neste contexto, são preocupantes as notícias de que o crédito bancário às famílias está de novo a aumentar, tendo batido recordes em maio de 2019 quer no crédito à habitação, quer no crédito ao consumo – especialmente no caso deste último, que é improdutivo e, contrariamente àquele, não visa a reposição de qualquer stock importante como é o habitacional. É certo que, olhando para os dados numa perspetiva mais longa, a PORDATA mostra que o crédito às famílias está longe da loucura de 2004-2007. Mas está perigosamente perto dos níveis de 2009-2010 – os anos imediatamente antes da crise financeira e do pedido de ajuda externa – e tem aumentado incessantemente (em termos nominais) desde 2014 – quando a economia portuguesa começou a recuperar da crise e do programa de ajustamento.
Se o endividamento das famílias continua tão elevado, a sua exposição a conjunturas e políticas menos favoráveis é, como se escreveu em cima, muito fragilizante. Embora não se preveja para os próximos dois anos qualquer subida acentuada das taxas de juro, já que os riscos de uma recessão não são assim tão baixos.
A nível agregado, o problema seria se a soma das poupanças internas – famílias, empresas, e Estado – não fosse suficiente para sustentar o investimento interno. Isso criaria desequilíbrios externos, ou seja, a necessidade de recorrer de novo a financiamento externo.
De 2009 para 2018, a taxa de poupança das famílias caiu 5% do PIB, enquanto a carga fiscal aumentou 4,1% do PIB. A correlação é clara; a explicação clara é.
No imediato, a situação agregada de Portugal não é preocupante, porque as empresas não financeiras têm conseguido progressos notáveis no seu desendividamento, e porque o Estado tem as contas equilibradas, não contribuindo negativamente para a poupança. Mas este último resultado é ilusório. Ilusório porque feito à custa de uma contenção artificial da despesa pública que está a levar à asfixia das Administrações Públicas e em algum momento vai rebentar. Ilusório ainda – e esse é o ponto essencial deste artigo, a que chegarei nos próximos parágrafos – porque feito à custa de poupança forçada das famílias. Esta questão está associada aos níveis baixos e decrescentes da taxa de poupança das famílias.
A taxa de poupança das famílias está baixa, e o crédito elevado, desde logo por razões monetárias e financeiras: taxas de juro negativas não incentivam poupança; injeção massiva de liquidez no sistema bancário incentiva-o a conceder mais crédito.
Acrescem razões estruturais da nossa economia: continuamos um País pobre, com uma enorme desproporção entre as aspirações de consumo e a nossa capacidade para criar riqueza. Esta desproporção é económica e psicossociológica: por um lado, teríamos de aumentar a nossa produtividade, produzindo mais e melhor; por outro lado, teríamos de moderar a ânsia consumista duma sociedade centrada na vida material.
Mas quero centrar-me numa outra explicação para a sucessiva diminuição da taxa de poupança das famílias, que me parece subvalorizada nas análises recentes, sendo contudo crucial a nível analítico e a nível político.
A poupança das famílias é calculada subtraindo as despesas em consumo ao seu rendimento disponível. Ora, a carga fiscal sobre as famílias tem aumentado brutalmente nos anos recentes, o que implica automaticamente uma diminuição da sua taxa de poupança, por duas vias: por um lado, o rendimento disponível fica mais baixo, porque as famílias pagam mais impostos sobre património e rendimento (quer de pessoas singulares (IRS) quer de empresas (IRC) – estas são propriedade das famílias e qualquer dissociação entre a carga fiscal sobre pessoas e empresas é pura ficção ideológica); por outro lado, o valor do consumo fica empolado pelo aumento dos impostos indiretos (IVA, imposto sobre produtos petrolíferos, sobre tabaco, imposto de selo, IMI, IMT,…).
De 2009 (quando a taxa de poupança das famílias portuguesas foi de 8% do PIB, a média da Área do Euro) até 2018 (taxa de poupança de cerca de 3% do PIB), a PORDATA diz-nos que a carga fiscal aumentou de 33,4% para 37,5% do PIB. O peso dos impostos diretos, que reduzem o rendimento disponível, aumentou de 8,6% para 10,4% do PIB. O peso dos impostos indiretos, que aumentam o preço do consumo, aumentou de 12,6% para 15,3%.
De 2009 para 2018, a taxa de poupança das famílias caiu 5% do PIB, enquanto a carga fiscal aumentou 4,1% do PIB. A correlação é clara; a explicação clara é.
Do ponto de vista agregado poder-se-ia argumentar que uma compensa a outra e portanto tudo estaria (aproximadamente) bem. Contudo, estes dados significam que as famílias portuguesas têm vindo a fazer poupança forçada: têm sido obrigadas a reduzir a poupança que deveriam ter o direito de decidir livremente – no seu montante, na sua aplicação – para ceder esses recursos ao Estado – que depois decide como, quando e em quê os utiliza.
Isto é um atropelo à liberdade económica: a poupança deve ser livre, responder a incentivos racionais, não forçada nem gerida por motivos políticos. Pior ainda, o Estado tem sido um péssimo utilizador da poupança das famílias. Tudo junto, a iniciativa privada tem sido cada vez mais depauperada. E isso perpetua a desproporção entre aspirações e capacidades de consumo a que acima me referia: a absorção de recursos privados pelo Estado, em tal escala e sem reformas estruturais, não aumenta a produção. Exige-se liberalizar a economia, reduzindo impostos, dando liberdade a cada pessoa para poupar quanto e no que entende. Isso, sim, estimularia a criação de riqueza e permitiria aumentar sustentadamente a (verdadeira) taxa de poupança das famílias.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.