O Governo criou em fevereiro o Programa de Apoio à Redução Tarifária nos transportes públicos (PART), através do qual disponibilizará 104 milhões de euros do Orçamento do Estado – a que se somarão 2,6 milhões de euros de co-financiamento municipal – para a redução substancial dos preços dos passes sociais.
Esta medida mereceu, nos seus termos gerais, uma opinião positiva, à qual sem dúvida me associo: ajuda-se a população mais carenciada, combatendo-se a desigualdade sócio-económica em cada região; estimula-se a utilização de transportes públicos, melhorando possivelmente o meio ambiente e o trânsito nas zonas mais urbanizadas.
As duas áreas metropolitanas (AML, de Lisboa, e AMP, do Porto) já estabeleceram acordos com os operadores de transportes públicos e iniciam em abril a venda de passes mensais únicos de 30 euros para transportes dentro do município e de 40 euros dentro da área metropolitana. Quanto ao resto do país, há notícias de que uma parte das 21 comunidades intermunicipais (CIMs) avançará também em abril, enquanto as restantes iniciarão os novos regimes em maio; algumas anunciaram preços iguais aos da AML e da AMP, mas no momento em que escrevo não é certo que todas o consigam fazer, mencionando-se descontos entre 10% e 50%.
Foram já apontadas várias críticas a esta medida; algumas merecem ser desvalorizadas, mas outras, pelo contrário, parecem-me ser de aprofundar.
Primeiro, houve quem assinalasse o eleitoralismo de se aprovar esta medida que entra em vigor pouco mais de meio ano antes das eleições legislativas. Se fosse só isso, eu desvalorizaria a crítica: faz parte da gestão natural dos ciclos eleitorais. Mas a questão ganha outros contornos quando se sabe que dos 104 milhões de euros gastos pelo Estado, 73 vão para a AML e 15 vão para a AMP – 85% do dinheiro que os contribuintes de todo o País gastam no PART fica em Lisboa e no Porto. Mesmo a olho nu, isto parece logo desproporcionado; e sendo desproporcionado é certamente eleitoralista, pois é bem sabido que estas áreas são determinantes para os resultados eleitorais.
Segundo, houve quem argumentasse que este estímulo à procura de transportes poderia não ter correspondência na capacidade de oferta de serviços pelos operadores. Muitos chamaram a atenção para linhas já superlotadas, ainda aos preços de hoje –especialmente nas áreas de Lisboa e Porto, mas também em algumas CIMs com cidades grandes. O que me espanta nisto é que não vi ventilados publicamente quaisquer estudos do impacto desta medida no mercado de transportes, nem soluções para eventuais congestionamentos. Haverá tais estudos? Haverá soluções para eventuais excessos de procura previstas nos contratos celebrados entre as AMs/CIMs e os operadores? Não consegui saber, e receio que este seja mais um caso da nossa enorme incapacidade de planeamento de políticas públicas. Se na verdade se implementou esta medida sem uma análise prévia de impacto e de custo-benefício, pode, com razão, questionar-se a sua eficácia e eficiência.
Não vi em nenhuma fonte qualquer justificação objetiva para estas disparidades nos fatores de complexidade; concluo, portanto, que foram fixados arbitrariamente, ou pelo menos subjetivamente. Não me custa perceber que os movimentos pendulares para concelhos e distritos adjacentes envolvam maior diversidade de meios de transporte em Lisboa e, ainda que em menor medida, no Porto. Mas a disparidade é tão grande que tem de ser justificada.
Terceiro, alguns operadores chamaram a atenção para a necessidade de que os pagamentos devidos pelo Estado – para compensar as diferenças entre os preços de hoje e os resultantes deste programa – sejam efetuados dentro de prazos razoáveis. Esta parece-me igualmente uma preocupação válida: o Estado português pratica prazos de pagamento incrivelmente longos junto dos seus fornecedores – tão longos, que se fosse uma entidade privada, com um peso menor, seguramente já não teria fornecedores. Preocupo-me ainda mais, sabendo que a responsabilidade da contratação com os operadores é das AMs e das CIMs. Pergunto-me se não poderá daqui resultar que o Estado central chame a si os benefícios desta medida (em popularidade) e se descarte dos seus riscos e alguns custos.
Voltemos à primeira crítica, que é para mim a mais importante. Como mencionei, a AML recebe 70% das verbas transferidas do Orçamento do Estado para o PART, e a AMP recebe 14,4%. A distribuição das verbas resulta de um fator que, para cada AM ou CIM, é calculado pela seguinte fórmula com três componentes (em que x significa multiplicação):
Fator de distribuição = (População que utiliza transportes públicos) x (Duração média dos movimentos pendulares em transportes públicos) x (Fator de complexidade do sistema de transportes)
Não tendo a possibilidade de questionar os números dos primeiros dois componentes, foco-me no terceiro, que me parece crucial: o fator de complexidade do sistema de transportes. Todas as CIMs têm um fator de complexidade igual a 1,0, enquanto a AMP tem um fator de complexidade de 1,3, e a AML tem um fator de complexidade igual a 1,9. Na prática, a AMP recebe mais 30% do Estado, por minuto de deslocação por utente, do que as CIMs; e a AML recebe quase o dobro por minuto de deslocação por utente do que as CIMs.
Não vi em nenhuma fonte qualquer justificação objetiva para estas disparidades nos fatores de complexidade; concluo, portanto, que foram fixados arbitrariamente, ou pelo menos subjetivamente. Não me custa perceber que os movimentos pendulares para concelhos e distritos adjacentes envolvam maior diversidade de meios de transporte em Lisboa e, ainda que em menor medida, no Porto. Mas a disparidade é tão grande que tem de ser justificada. E não me custa imaginar deslocações pendulares em volta de cidades médias com trajetos e complexidades quase tão elevadas como as mais frequentes em Lisboa e Porto. Com a informação que é pública, a crítica do eleitoralismo ganha relevância: beneficia-se de forma opaca as áreas que mais importantes são para as eleições.
Acresce que estas áreas são as mais ricas do País. Se alguma diferença devia haver, talvez fosse a de dar maiores descontos nos passes sociais em grande parte das CIMs, aquelas com menores rendimentos per capita e com maior dificuldade de fixação de população. Fazer um ajustamento dos preços dos passes sociais para uma paridade de poder de compra regional exigiria seguramente mais verbas do Estado para muitas CIMs e seria incompatível com a elevadíssima concentração de apoios na AMP e sobretudo na AML.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.