O que é que Ele viu… que eu não vejo?

Ainda assim, sabendo a resposta, desejava fazer a pergunta certa: o que é que Ele viu que eu não vejo? Tentei fazer a composição de 10 situações nas quais desejei ver se via um bocadinho do que Ele viu.

Integrado no Ano Inaciano que a Companhia de Jesus está a celebrar, os colégios da Província Portuguesa da Companhia de Jesus viveram a sua Semana Inaciana subordinada ao tema: “Ver Como Jesus”. Esta frase andou na t-shirt e no coração de muita gente! A dinâmica das atividades foi-me escapando uma vez que “confinado” nos trabalhos da Cúria, ia vendo o convite a “Ver Como Jesus”, nos papéis, nas burocracias, nos contactos pessoais, nos telefonemas e (pre)ocupações. Ainda assim, sabendo a resposta, desejava fazer a pergunta certa: o que é que Ele viu que eu não vejo? Tentei fazer a composição de 10 situações nas quais desejei ver se via um bocadinho do que Ele viu.

1ª Jesus ao desembarcar, viu uma grande multidão e compadeceu-Se de toda aquela gente, porque eram como ovelhas sem pastor (Mc 6,30-34). Jesus não viu uma massa humana amorfa, sem rostos, sem história. O olhar de Jesus não foi nada distante, nem descomprometido, nem indiferente, nem frio. Jesus olha com compaixão, isto é, Ele sente o que as pessoas sentem, vivem e precisam. Os discípulos viram gente para mandar para casa. Jesus viu respostas a dar, não sem as pessoas que ali se encontravam, mas envolvendo-as.

2ª O Jovem rico. Jesus olhou para o jovem rico. Fixando nele o olhar com afeição, disse-lhe: “falta-te uma coisa, vai, vende tudo quanto tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu” (Mc. 10,21). Vai e vem, disse-lhe Jesus. O jovem foi, mas parece não ter voltado. Podemos ver este jovem como um “não exemplo” a seguir. Mas não podemos deixar de ver o movimento do encontro, a força do olhar (com afeição) da parte de Jesus, e acima de tudo, a lição que esta narrativa pode ter para as nossas vidas, se a quisermos ler com olhos de ver.

3ª O chamamento de Mateus (Mt. 9,9). E Jesus, passando adiante dali, viu sentado na alfândega um homem, chamado Mateus, e disse-lhe: “Segue-me. E ele, levantando-se, seguiu-O”. Onde muitos viam um cobrador de impostos, suspeito, metido na prateleira dos preconceitos e defesas, Jesus surpreende com o olhar das oportunidades que reabilita e humaniza.

4ª Jesus e o paralítico (Mt. 9,2). Alguns homens trouxeram-lhe um paralítico, deitado numa cama. Jesus vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: “coragem, filho, os teus pecados estão perdoados”. O que poderia ter sido visto como “encenação”, entusiasmo impulsivo de grupo, desespero de um paralítico; Jesus viu espírito de ajuda, sentido familiar, comunitário, social, e acima de tudo, a esperança de quem nada tem a perder e tanto poderia ganhar.

5ª Jesus e o coxo junto à piscina de Betsaida (Jo. 5.1-9). Quando Jesus viu o coxo junto ao tanque de Betsaida, Ele não viu um aleijado, diminuído, excluído. Ele viu um homem que depois de 38 anos doente ainda vivia na esperança de ser curado. Todos viam um coxo, desprezado, inútil e teimoso. No entanto, depois deste homem se deixar ver por Jesus, já não é transportado no leito, antes, transporta o leito. De seguida, Jesus vê um homem transfigurado, correndo e saltando cheio de vida e entusiasmo.

6ª Jesus e a morte de Lázaro (Jo. 11,33-36). Ao ver Maria a chorar e os judeus que a acompanhavam, Jesus perturbou-se. “Onde o colocaram? “, perguntou Jesus. “Vem e vê, Senhor”, responderam eles. Jesus chorou. Então os judeus disseram: “Vejam como Ele o amava!” Quando Jesus mandou retirar a pedra do túmulo, Ele não via um cadáver malcheiroso, antes, viu um velho amigo caminhando diante de um conjunto de pessoas críticas. Jesus via vida, onde todos já tinha desistido de a ver ou taparam o nariz por causa do mau cheiro.

7ª Jesus olha para Zaqueu (Lc. 19,5). Quando Jesus chegou àquele lugar, olhou para cima e disse a Zaqueu: “Zaqueu, desce depressa. Quero ficar hoje em tua casa”. Apenas um olhar e algumas palavras foram suficientes para produzir a mudança mais inesperada na vida do chefe dos publicanos de Jericó. Enquanto todos viam um curioso, fiscal corrupto, sem possibilidades de recuperação, Jesus vê uma pessoa que tinha feito tudo para O ver, e não só consegue ver Jesus, mas surpreendentemente ser visto por Jesus.

8ª Jesus perante Pedro na noite da traição (Lc. 22, 60-61). Jesus voltando-se fitou os olhos em Pedro e este recordou-se da palavra do Senhor ao afirmar-lhe: “Antes de um galo cantar, me negarás hoje três vezes”. Pedro passou por contradições, traições e fragilidades. No entanto, Jesus viu em Pedro aquilo que ninguém viu, nem o próprio Pedro. Onde muitos provavelmente viam uma pedra rude, contraditório, sem qualificações, nem sequer com provas de que tivesse sido um bom pescador (uma noite sem pescar nada); há qualquer coisa que Jesus vê na atitude genuína e apaixonada daquele homem e que nos desconcerta. Esta pode ultrapassar o nosso olhar e avaliações prematuras.

9ª Jesus olhou para a cidade de Jerusalém e chorou (Lc. 19,41). Quando Jesus se aproximou, viu a cidade de Jerusalém e chorou sobre ela. Esta é uma das poucas referências nos evangelhos em que Jesus chora. Nesta passagem, Jesus olha e vê, vê e chora, chora em quem sofre e chora até aos dias de hoje em cada ser humano que sofre!

10ª Jesus, na cruz, vê sua Mãe e o discípulo João (Jo. 19,26-27). Quando Jesus viu sua mãe ali e perto dela, o discípulo a quem Ele amava, disse à sua mãe: “Eis o teu filho”, e ao discípulo: “Eis a tua mãe”. Daquela hora em diante, o discípulo recebeu-a em casa. O que é que se conseguirá ainda ver quando humanamente tudo parecia estar consomado? A mensagem dos textos é muito incisiva: Jesus olha com afeto. Só com afeto, límpido e puro, muitas vezes paradoxal e desconcertante, é possível transformar o olhar em ver. Só assim poderemos ver novas todas as coisas… em Cristo!

Fotografia de: Josh Calabrese – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.