O Deus dos interstícios

Em todas as coisas do céu e da terra vejo beleza, sobretudo nas criaturas vivas; mas em nenhuma delas vislumbro significado intrínseco para a existência, em nenhuma vejo Deus. E recordo o Evangelho de São João: “a Deus nunca ninguém O viu”.

Paisagens como esta, que me rodeia enquanto escrevo, parecem vazias apesar de estarem plenas. É o caso deste imenso planalto, onde até à linha do horizonte praticamente só se vislumbra o restolho das searas recém-ceifadas sobre um relevo de colinas suaves; as árvores, quase sempre solitárias e ananicadas, parecem dissolver-se entre a palha; nalgum cerro erguem-se ainda as ruínas de alguma ermida antiga ou as bases de uma atalaia abandonada. Encontro-me nos campos de Castela e, embora vinte minutos de caminhada bastem para me levar de regresso à aldeia mais próxima, e daí à cidade, sinto-me rodeado de vazio como se estivesse no mais remoto deserto, na mais vazia das paisagens. De noite, então, quando o ar esfria e as nuvens se dissipam, o céu parece imensamente maior do que visto dos bosques ou das ruas, e mais profundo, e o infinito do espaço se torna tão evidente aos sentidos como era à razão.

Estes sentimentos são vividos por qualquer pessoa atenta em ambientes semelhantes, seja na meseta castelhana, num deserto da arábia, numa estepe asiática, numas pradarias americanas ou numa tundra siberiana. Weber, o sociólogo alemão de inícios do século XX, postulava serem essas paisagens vazias, com a sua ecologia e a sua morfologia e a lógica nómada da sua ocupação humana, a causa inspiradora do monoteísmo; outros antropólogos alegaram, por corolário, ser o politeísmo uma religião própria de povos dos bosques. Tais teorias são indiferentes para quem busca preencher esse vazio com um significado ontológico, para quem dispensa uma resposta científica a uma questão existencial.

Precisamente, paradoxalmente, é por não estar em lugar nenhum que Ele se encontra em todo o lado.

Ergo-me e ponho-me a caminho. A paisagem aparentemente vazia afinal está repleta de coisas e de seres. Dizem os mapas geológicos que no subsolo se encontram arenitos do Mioceno velhos de dez milhões de anos; e os meus pés assentam sobre cambissolos anteriores aos homens; crescendo ao longo das estremas dos trigais, dezenas de espécies vegetais silvestres, cujas gerações se sucedem aqui desde a noite dos tempos; cruzam os ares escaravelhos inumeráveis, cotovias, corvos, milhafres, picanços, abelharucos e, ao crepúsculo, noitibós. As nuvens — ora cúmulos, ora cirros, ora nimbos, velam a abóboda celeste; quando a desvelam, vêem-se com nitidez extrema as estrelas reais e as constelações irreais que nelas queremos ver. Há tanto por ver — só não se vê gente, nem o significado destes objectos, nem o sentido ético da relação entre o sujeito humano que observa e o somatório infinito de objectos animados e inanimados que o rodeiam. “O essencial é invisível aos olhos”, dizia a raposa de Saint Exupéry num outro deserto a uma outra pessoa.

Quando não vemos aquilo que procuramos, presumimos que se encontra escondido algures. Que se perdeu numa ranhura, se ocultou sob uma pedra ou uma raiz, se afundou num regato — e insistimos na busca. Assim fazemos com a busca de significado para a vida: revolvemos o Saber, procuramos entre as descobertas da Ciência e as obras de Arte, entre os projectos de Arquitectura e as patentes de Engenharia, para aí encontrarmos soluções práticas, sublimações emocionais, ou esclarecimentos intelectuais — mas nunca uma resposta definitiva. Dir-se-ia que o sentido da vida se nos escapa entre os interstícios do que sabemos, como uma miragem que se dissipa ao aproximarmo-nos.

Bato à porta de uma casa. Abrem e sorriem. A ceia está pronta e o pão em vias de ser compartido. Deus está entre nós.

Continuo a caminhada através dos cereais cortados, sob um firmamento majestoso. O plenilúnio dá-se por esta data, de modo que o nascimento da lua cheia coincide com o ocaso do sol. Todo o cenário é belíssimo e misterioso. Perto daqui, um tanto a Sul, São João da Cruz terá visto o mesmo quando se dedicava à sua demanda mística por Deus, dador de sentido às coisas e aos seres. E não pude deixar de me recordar da via negativa dos místicos, buscando Deus pelo que Ele não é, constatando pela indagação como a Sua presença não está em nenhum lugar concreto, em nenhuma coisa em particular, em nenhum ser em especial — Deus não é um mistério escondido nos interstícios da realidade, não é uma explicação misteriosa à nossa espera entre os interstícios das teorias científicas, não é uma sensação misteriosa despertada pelas Artes entre os interstícios do tédio e do desespero quotidianos. Precisamente, paradoxalmente, é por não estar em lugar nenhum que Ele se encontra em todo o lado.

Prossigo ao longo da vereda. Lá ao fundo abre-se um pequeno vale, e nele um arroio, e nas suas margens uma pequena aldeia quase despovoada, como todas. Jorra luz de algumas janelas: há quem ali habite. Em todas as coisas do céu e da terra vejo beleza, sobretudo nas criaturas vivas; mas em nenhuma delas vislumbro significado intrínseco para a existência, em nenhuma vejo Deus. E recordo a abertura lapidar do Evangelho de São João: “a Deus nunca ninguém O viu”. Não O vimos, mas de Jesus escutámos a mensagem que buscávamos: “Amai a Deus e ao próximo como a vós mesmos”. Amai o mistério da Criação e quem nela habita.

Bato à porta de uma casa. Abrem e sorriem. A ceia está pronta e o pão em vias de ser compartido. Deus está entre nós.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.