O bem comum como caminho, a solidariedade como solução no mundo pós-Covid 1

O “bem comum” é um conceito essencial porque, sem essa perceção de coletivização da nossa vida social deixamos de ser indivíduos parte de uma sociedade, para passarmos a ser meros clientes, consumidores, utilizadores ou utentes.

Passaram nove meses desde o início da pandemia provocada pelo Sars-Cov-2, mas estamos ainda longe de poder declarar o seu fim global. Compreendemos já a severidade da doença e as suas consequências ao nível de saúde pública, pelo menos no curto prazo, mas não conhecemos ainda as suas consequências económicas e sociais, sobretudo a longo prazo. A pandemia destapou problemas que, ao longo dos anos, escondemos debaixo de um manto de invisibilidade social e política. Separarei as consequências em Portugal das do resto do mundo, embora, como tudo o que acontece num sistema social fechado, as interconexões sejam evidentes. Por cá, de entre múltiplas consequências económicas, sociais e políticas, (algumas ainda adiadas, mas que previsivelmente chegarão), destaca-se o aumento da visibilidade da omnipresente desigualdade num dos mais desiguais países europeus. Esta desigualdade estrutural será o cerne deste pequeno texto.

 

Sabemos hoje que há uma linha que separa as gerações mais velhas das novas gerações. Há uma separação entre os velhos e os idosos. Sabemos que, entre os mais velhos, há um grupo social ainda mais vulnerável socialmente, composto pelos velhos que estão em isolamento social há demasiado tempo e pelos velhos que estão institucionalizados em condições insuficientes e degradantes sem que, coletivamente, tenhamos ainda sabido reagir. Velho é aqui um adjetivo e não uma condição e, por isso, contém todo um conceito de abandono social coletivo que é um grito social de alerta que urge escutar. Se a esperança média de vida tem aumentado nas últimas décadas, a nossa esperança de ter uma vida média quando envelhecemos não tem acompanhado essa evolução. Ajudar quem envelhece a saber envelhecer com qualidade de vida é um dos desafios maiores para as sociedades contemporâneas.

 

Concomitantemente, persiste entre nós uma divisão entre ricos e pobres que se reconstrói em torno de (novas) desigualdades. Disparidades de acesso à internet, de acesso a cuidados de saúde, de acesso a salários dignos, de acesso à informação factual (por oposição ao que é fake). Esta desigualdade reproduz e alimenta disparidades do passado transformando-as em desigualdades futuras num ciclo perpétuo de pobreza e exclusão inter geracional. Os jovens pobres do passado são hoje velhos sem futuro, não por culpa deles, ou em resultado da sua preguiça, mas de um sistema de pensões que é minimalista, socialmente discriminatório e desfasado da realidade social e económica atual. Como podemos pretender que quem toda a vida foi pobre trabalhando, possa agora subsistir na velhice com pensões de reforma que mal dão para um cesto básico de supermercado? Ao mesmo tempo, as crianças sem acesso à internet ou os jovens sem rendimento para frequentar a escola são um aviso sério à necessidade de construção de políticas precoces de combate à pobreza e exclusão de um futuro que se aproxima rapidamente. A educação é ainda a única vacina para a pobreza e, no meio da pandemia, fica mais claro que há muitos jovens que estamos (nós sociedade) a deixar para trás, a quem estamos, claramente, a roubar o futuro.

Os jovens pobres do passado são hoje velhos sem futuro, não por culpa deles, ou em resultado da sua preguiça, mas de um sistema de pensões que é minimalista, socialmente discriminatório e desfasado da realidade social e económica atual.

Há outras desigualdades essenciais, como sempre, invisíveis aos olhos. Desde logo, existe um apartheid sociológico evidente em torno dos desequilíbrios demográficos e da distribuição da população no território nacional. Também aqui há linhas que separam. As oportunidades sociais e económicas geradas (e os benefícios obtidos) pela população residente nas áreas metropolitanas ou em territórios de baixa densidade tendem a ser discriminatórias em desfavor destas últimas. Dos múltiplos exemplos disponíveis destaco o acesso à saúde, ao emprego ou a carreiras profissionais dinâmicas ou o acesso à cultura. Quem ousa dizer que um jovem do interior profundo português terá as mesmas oportunidades de desenvolver o seu potencial do que um cidadão das grandes urbes do litoral? Quem garante que um velho de um pequeno concelho da beira interior receberá atempadamente o mesmo tratamento médico que um idoso de Cascais ou de Coimbra? Quando atentamos no esforço que é feito para ir à escola (tantas vezes na longínqua sede do concelho) por muitas crianças e jovens deste país, quando percebemos a dificuldade de contratar e reter médicos ou enfermeiros fora dos grandes centros urbanos nacionais, quando assistimos ao despovoamento de quase tudo o que não é litoral, percebemos que as linhas que separam são afinal muros que muitos cidadãos não conseguem ultrapassar, fronteiras sociológicas que apartam realidades socialmente divergentes. A desigualdade social é, afinal, também o resultado de um apartheid territorialmente condicionado e politicamente induzido. Num país em que os recursos têm sido sempre escassos é o favorecimento continuado das áreas metropolitanas que condena tudo o resto ao envelhecimento e à desertificação futura. Também aqui o vírus destapa (e permite ver melhor) uma velha realidade. Não será exagero falar de um colonialismo das áreas metropolitanas sobre o resto do país, com um custo que o futuro se encarregará de apresentar.

 

Na procura de soluções para os problemas sociais complexos que estamos a viver, uma autora que venho acompanhando é Mariana Mazzucato, economista italiana que vive e trabalha em Londres. Mazzucato considera que a crise desencadeada pela pandemia de covid-19 é uma oportunidade de “fazer um capitalismo diferente”. Um capitalismo sem perdedores. Esta pensadora volta a trazer o Estado para a equação do capitalismo e para a solução dos seus disfuncionamentos, designadamente para a procura de soluções para a estrutural desigualdade. Na verdade, como percebemos com as últimas crises: a financeira de 2008 e a pandémica de 2020, o Estado é a garantia última do sistema, mesmo para os banqueiros ou para os profissionais liberais ou os liberais profissionais. Se tudo o resto falhar, resta o Estado. Exemplos não faltam, da saúde aos transportes, da educação à banca. Uma das propostas radicais de Mazzucato é de que o Estado (isto é, todos nós) participe também nos lucros e não apenas no prejuízo do capitalismo. Se uma nova vacina, um novo medicamento ou uma nova tecnologia for resultado de uma investigação subsidiada a 75% por fundos públicos, a distribuição do seu lucro deverá ser proporcional. No investimento público incluem-se variáveis hoje invisíveis ao olho cínico do capitalismo contemporâneo, como sejam o custo da formação dos cientistas, dos técnicos e de desenvolvimento dos próprios projetos, das infraestruturas e até do risco assumido no desenvolvimento de um produto ou tecnologia. Esse lucro deve, posteriormente, ser reinvestido no “bem comum”. Parecendo simples, esta é uma ideia disruptiva para o capitalismo avançado em que vivemos. Como sociólogo entendo o capitalismo como uma construção social e não como uma estrutura rígida, imutável e definitiva. O capitalismo é um modelo de organização social ao serviço das sociedades e não o inverso e, por isso, é possível modificá-lo em face das necessidades sociais coletivas.

O capitalismo é um modelo de organização social ao serviço das sociedades e não o inverso e, por isso, é possível modificá-lo em face das necessidades sociais coletivas.

Os últimos meses destaparam desigualdades, os próximos meses tendem a agravá-las ainda mais. No seio da sociedade em que vivemos o “bem comum” é um conceito essencial porque sem essa perceção de coletivização da nossa vida social (tão bem demonstrada pelo confinamento social e os desafios que este nos trouxe) deixamos de ser indivíduos parte de uma sociedade para passarmos a ser meros clientes, consumidores, utilizadores ou utentes. Quando nos confinámos, abandonámos uma certa ideia de sociedade em que o abraço, o sorriso, a ternura, a confiança, a cultura, preenchem as nossas vidas e lhes dão sentido social. Quando desconfinámos, abandonámos a ideia de que somos mais felizes sozinhos e hoje, tão pouco tempo depois, sabemos que sem o outro, sem os outros, não somos verdadeiramente “nós”. O “bem comum” coletivamente alcançado será, assim espero, num futuro próximo, este “nós” socialmente construído que nos traz a serenidade de saber que não estamos a deixar ninguém para trás.

Fotografia de  Morning Brew – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.