Depois de um longo período de quarentena ou – melhor dito – de confinamento, em que as palavras de ordem foram fechar, recolher, isolar (para conter a disseminação da epidemia e o sistema de saúde poder aguentar o choque), estamos agora numa nova fase de reabertura, recomeço e reconstrução, mas também de prudência e limitações. Enquanto nos vamos adaptando devagar a esta “nova normalidade”, o grande desafio é não olharmos para trás com um saudosismo que nos leve a querer regressar ao ponto em que estávamos, alimentando o desalento diante de tudo o que se “perdeu”.
Neste domingo, 31 de maio, o Papa Francisco concluiu a sua intervenção no final da oração do Regina caeli advertindo: “de uma crise como esta não se sai igual”. Querer sair igual, querer voltar para trás e esquecer o que vivemos, além de impossível, levar-nos-ia a passar ao lado da oportunidade de aprender algo, de crescer e transformar-nos, individualmente e como sociedade. “Desta crise – continuou o Papa – sai-se melhor, ou sai-se pior». De facto, depois de um primeiro sobressalto de união, de sentido de pertença e de sacrifício por um bem maior, rapidamente parecem ter regressado as tensões e polarizações, muitas vezes agudizadas (levando nalguns casos a confrontos e violência), que vão enchendo as redes sociais e os noticiários. Existe, certamente, o risco de fazer ou permitir que tudo “fique pior” – e não estou a pensar em primeiro lugar na crise económica, mas na nossa capacidade de viver e construir juntos, enquanto sociedade, enquanto país, enquanto humanidade…
Existe, certamente, o risco de fazer ou permitir que tudo “fique pior” – e não estou a pensar em primeiro lugar na crise económica, mas na nossa capacidade de viver e construir juntos, enquanto sociedade, enquanto país, enquanto humanidade.
Para enfrentar o tempo exigente que agora nos cabe viver, de uma forma construtiva, identifico três desafios principais:
1. À ciência o que é da ciência (e nada mais). A pandemia que atravessamos pôs em evidência o paradoxo de uma sociedade que nos últimos séculos se desenvolveu transferindo (dito em termos globais e simplistas) a sua fé em Deus para a confiança cega na ciência e na técnica. Por um lado, todos nos tornámos especialistas em virologia, epidemiologia e saúde pública, convidados a acompanhar ao pormenor os números, as linhas de investigação, as cadeias de transmissão, a taxa de reprodução, etc. Por outro, fomos confrontados com uma enorme disparidade de opiniões, estudos e indicações oficiais (sempre com base em opiniões técnico-científicas) inseguras e até contraditórias, ao ponto de se formarem “claques” em torno de estratégias e de personalidades, assumidos como quem defende um clube de futebol. Desde logo, convém reconhecer que estamos diante de algo novo e desconhecido, pelo que não podemos senão navegar à vista. Mais ainda, talvez tenhamos descoberto que a ciência, mesmo quando qualificada de “natural”, muitas vezes não é tão exata ou objetiva quanto a idealizámos… Existe, portanto, o perigo de simplesmente “esconder-nos” atrás dos números, das teorias, das personalidades que vêm confirmar a nossa própria posição. A ciência deve ter a humildade de reconhecer que não possui a última palavra, e quem a ela recorre deve tomá-la como instrumento de (auto)crítica e diálogo que a define (recordando a lição de Karl Popper, os “dados” têm mais valor quando põem em causa a minha teoria do quando a confirmam).
2. Exigência com quem exerce autoridade. Nos últimos meses, vimos os dirigentes do mundo confrontados com a necessidade de tomar decisões com gravíssimas consequências, chamados a resolver o dilema entre saúde (pública, dos mais frágeis) e economia (aquela real, dos pequenos comerciantes e empresários, dos trabalhadores precários, de quem vive do turismo…). Estou certo de que (praticamente) todos eles optaram, em consciência, e decidiram aquilo que acreditavam ser, tudo somado, o melhor para os seus cidadãos. Sob diversas denominações e configurações jurídicas muitíssimos países adotaram medidas de “emergência” que envolvem uma pesada intervenção do poder público na sociedade, primeiro para limitar o contágio e combater a doença, mas logo a seguir, para tentar minimizar o impacto económico e social da crise. O desafio (para não dizer “perigo”) da emergência é o de saber sair dela e não deixar que a exceção se torne normalidade (como mostram tantíssimos exemplos ao longo da história, cujo paradigma é a transformação da República romana em Império). Se numa primeira fase uma liderança forte se media em “intervenção”, agora os governantes têm de saber resistir à tentação de regular até ao mais ínfimo pormenor a vida dos seus cidadãos. Cabe à sociedade como um todo, através do diálogo e de uma saudável oposição exigir um “regresso” à subsidiariedade, comprometendo-se a agir com prudência e tendo em vista o bem comum, sem que seja necessário que exista um “manual” da Direção-geral da Saúde (DGS) para cada um passeio no campo, um jantar com amigos, uma atividade de voluntariado, etc.
Se numa primeira fase uma liderança forte se media em “intervenção”, agora os governantes têm de saber resistir à tentação de regular até ao mais ínfimo pormenor a vida dos seus cidadãos.
3. Renúncia ao “salve-se quem puder”. «Ninguém se salva sozinho», não se tem cansado de repetir o Papa, desde aquela dramática tarde de 27 de março: poderia ser a lição mais bela e “potente” a aprender de toda esta situação. Poderíamos crescer no sentimento de responsabilidade uns pelos outros, diante do perigo muito real de contribuirmos para a difusão de um vírus letal. Poderíamos reconhecer a força da solidariedade pública e privada, pondo as nossas capacidades e forças ao serviço de quem mais precisa. Poderíamos reconhecer-nos como fraternidade humana e colaborar para encontrar juntos a melhor forma de combater a pandemia… Sim, poderíamos, mas – apesar de tudo isto, de forma mais ou menos escondida, existir – não é a isso que temos assistido. Como no “dilema do prisioneiro”, poderíamos todos ficar melhor se colaborássemos (a todos os níveis: indivíduos, instituições, Estados), mas quando reina a desconfiança é “cada um por si” e todos acabam pior. O caso da União Europeia é exemplar: podemos estar diante de uma oportunidade de ouro para uma “refundação”, em torno de valores comuns, de um projeto que saiba cativar e entusiasmar… ou então deixar que os atores se contentem com um regatear de “trocos” (mesmo que sejam milhares de milhões de euros) e “medidas de austeridade” (com toda a carga moralista que acompanha o discurso da “frugalidade”). O mesmo se diga, a uma escala mais próxima, no que toca ao debate do “quê/quando/como reabrir”. Todos professam seriedade e até espírito de sacrifício, em abstrato, mas não hesitam em rasgar as vestes quando não recebem a ajuda desejada ou as limitações tocam a própria atividade, ou simplesmente os próprios hábitos e conforto.
Estes desafios ultrapassam, certamente, aquilo que cada um de nós, individualmente, pode fazer. Mas se todos começássemos por aproveitar a crise que atravessamos para “mudar para melhor” nós próprios, estimulando e exigindo também mudança em quem nos rodeia (dos familiares e vizinhos ao deputado ou autarca que elejo), estou certo que poderíamos um dia mais tarde olhar para 2020 e não dizer que “foi um ano perdido”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.