Uma das características do sistema fiscal vigente que sempre me perturbou é a dupla tributação dos dividendos. Quando geram lucros, as empresas pagam impostos (imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, IRC); quando esses lucros são distribuídos, os proprietários das empresas pagam impostos (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, IRS).
Sempre pensei que quem deve pagar impostos (e receber transferências) são as pessoas e apenas as pessoas. As empresas são entidades – criadas por pessoas – com o único objetivo de criar valor de forma mais eficiente; isto é, com o objetivo de distribuir mais rendimentos pelas pessoas, sejam elas os seus trabalhadores ou os seus proprietários. À medida que fui aprendendo economia e fui vendo o mundo a mudar, tenho vindo a ficar cada vez mais convencido de que só as pessoas devem ser tributadas.
Não faltam argumentos a quem defende que as empresas devem pagar impostos, nem faltam apoiantes a esse status quo: na verdade, a generalidade das pessoas e dos economistas pensa que sim, as empresas devem pagar impostos. Não pretendo enumerar nem discutir essa multiplicidade de argumentos, alguns de grande detalhe e sofisticação técnica. Pretendo, antes, sugerir que há uma razão mais de fundo implícita por trás desses argumentos. E argumentar que essa verdadeira razão para a tributação dos lucros empresariais é, hoje em dia, anacrónica.
Em última instância, parece-me que a existência de impostos sobre os lucros das empresas radica implicitamente na velha visão da luta de classes, da oposição entre capital e trabalho. As empresas são ainda vistas, por muitos, como aquela entidade na qual o capital – leia-se, o proprietário da empresa – extrai valor duma força de trabalho insuficientemente remunerada. E as empresas, bem como a sua propriedade, são vistas de forma estática, como se o capitalista tivesse nascido capitalista e nunca pudesse deixar de o ser. Tributa-se, então, a empresa, e tributa-se duplamente o seu proprietário quando dela retirar dividendos.
Esta visão é evidentemente falaciosa, pois se a empresa tem de alocar recursos ao pagamento de impostos, cria menos valor e portanto tem uma menor capacidade de distribuir rendimentos por todas as pessoas que nela operam, incluindo os seus trabalhadores. Mas adiante; concentremo-nos em aspetos mais novos da questão.
Quando hoje olhamos para o mundo vemos uma realidade muito diferente da do Século XIX e da primeira metade do Século XX, que em grande medida legitimaram esta visão das coisas.
Uma das lições mais importantes que se aprende em economia é que os impostos distorcem a afetação de recursos.
O capitalismo tornou-se popular: uma grande quantidade de famílias é proprietária de parcelas (tipicamente pequenas) do capital social das empresas – cujo capital se foi progressivamente aberto, com o desenvolvimento do sistema financeiro.
O mundo tornou-se global: é frequentemente muito difícil dizer quem são os proprietários das empresas; e em que país se situa a sede, independentemente das múltiplas filiais situadas em inúmeros países.
A fiscalidade tornou-se instrumento de concorrência: muitos países praticam taxas de IRC deliberadamente mais baixas para captar investimentos estrangeiros – e com eles postos de trabalho, negócios com fornecedores locais, receitas de exportações e de impostos decorrentes da maior atividade económica.
O perfil das empresas tem vindo a mudar: a par das médias e grandes empresas tradicionais, têm ganho relevância micro e pequenas empresas nas quais o empreendedor coincide em larga medida com o trabalhador; por um lado, tais empresas, em grande parte associadas a novas tecnologias e suficientemente flexíveis para operar local e globalmente, são possibilitadas pelo progresso tecnológico e pelo funcionamento mais flexível dos mercados; por outro lado – ponto que me parece crucial – são crescentemente a única oportunidade profissional para uma grande parte da massa de jovens altamente qualificados que completa o ensino superior.
O capitalista e as empresas do Século XXI não têm nada a ver com o capitalista e as empresas dos Séculos XIX e XX. Por isso, tributar as empresas é cada vez mais anacrónico.
Tributar empresas é difícil e injusto: tributa-se empresas em países nos quais pouca ou nenhuma atividade desenvolvem, não as tributando onde realmente operam; há um número cada vez menor de empresas a contribuir para as receitas de IRC no “país típico” (ou seja, pouco agressivo na competição fiscal).
Tributar empresas é indesejável: desincentiva-se a iniciativa empreendedora que é crucial para o futuro dos jovens qualificados que o sistema educativo gera e que o mercado de trabalho não absorve; e que é crucial para o crescimento e desenvolvimento de muitos países – desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.
Uma das lições mais importantes que se aprende em economia é que os impostos distorcem a afetação de recursos. Na realidade, não há impostos neutros: as decisões das pessoas quanto a trabalhar, consumir, poupar, investir, etc. são condicionadas pela arquitetura do sistema fiscal.
No mundo contemporâneo, urge simplificar a fiscalidade e torná-la mais amigável da iniciativa empresarial. E isso não tem nada de injusto. Pelo contrário, repõe grande parte da justiça fiscal que se perdeu com a manutenção de um sistema pensado para um mundo em que não havia capitalismo popular, globalização e concorrência fiscal. E é vital para que o “elevador social” volte a funcionar – ou seja, para que os jovens inteligentes e bem preparados tenham oportunidades profissionais alinhadas com as suas capacidades. Insisto: esses jovens são, em grande medida, simultaneamente trabalhadores e capitalistas.
Urge reformular a fiscalidade, adaptando-a à realidade do Século XXI. Parece-me crucial e urgente, em especial, repensar a tributação sobre as empresas, considerando seriamente a possibilidade da sua eliminação.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.