A proposta de Orçamento do Estado para 2019 (OE 2019) não muda praticamente nada em termos agregados. Não é expansionista nem contraccionista, porque o saldo primário estrutural na prática não varia – 3,0% do PIB em 2019, face a 2,9% em 2018 – e mantém o nível global de austeridade, porque a receita tributária global não se altera – cerca de 35% do PIB (veja-se, para uma explicação mais detalhada destes indicadores, o nosso artigo de Junho deste ano).
Já em termos microeconómicos, o OE 2019 inclui algumas medidas redistributivas que transferem recursos entre actividades e entre famílias. Detenho-me hoje em duas medidas muito concretas ligadas ao ensino.
Primeiro, o Estado vai assegurar o acesso gratuito, por parte de todos os estudantes da rede pública, aos manuais escolares até ao 12º ano, promovendo a respectiva devolução para reutilização. Parece-me, por princípio, inteiramente justo que se garanta a gratuitidade dos manuais até ao 12º ano, porque este grau corresponde ao da escolaridade obrigatória: ao direito do Estado determinar que é obrigatório estudar até ao 12º ano (ou até aos 18 anos), deve corresponder o seu dever de assegurar que nenhuma pessoa esteja impossibilitada de cumprir essa escolaridade obrigatória.
Também me parece muito bem que se promova a reutilização dos manuais. Apenas espero que isso passe do papel a uma prática sistemática, eficaz e eficiente. Até agora, a situação parece-me caótica: há escolas que fazem isso bem, outras mais ou menos, e outras nada fazem. É inaceitável ver famílias de fracos recursos a pagar manuais escolares caríssimos e outras bem mais ricas a conseguirem reutilizar manuais de amigos, porque aquelas têm uma menor rede de relacionamentos sociais do que estas.
Parece-me que se está a alimentar uma indústria de autores e editores sem correlativos ganhos de qualidade e com o efeito secundário de se dificultar escusadamente a reutilização dos manuais. P
Pergunto-me, contudo, duas coisas. Primeiro, será que é necessário continuar a haver tantos manuais escolares diferentes para cada disciplina? O programa é – por definição de escolaridade obrigatória – igual para todas as escolas. Ainda que se percebesse a vantagem da concorrência para promover a qualidade, na prática são pequeníssimas as diferenças entre a maioria dos manuais. Parece-me que se está a alimentar uma indústria de autores e editores sem correlativos ganhos de qualidade e com o efeito secundário de se dificultar escusadamente a reutilização dos manuais. Pergunto ainda: basta oferecer os livros para que todos possam cumprir o dever da escolaridade obrigatória? Talvez valha a pena recordar que foi este mesmo Estado que acabou com contratos de associação que ofereciam aos jovens de muitas localidades ensino gratuito em escolas privadas, porque não havia escolas públicas acessíveis. Neste momento, muitas famílias têm de suportar custos de deslocação desmesurados ou de colocar os seus filhos em escolas públicas sem dimensão nem qualidade adequadas.
Segunda medida: propõe-se que as propinas nas universidades públicas diminuam em 212 euros, passando o tecto das propinas de 1068 para 856 euros por ano lectivo. Na prática, as propinas ficarão ainda mais aquém do custo efectivo de cada estudante (quanto aquém depende, evidentemente, da natureza do curso) e o Estado terá de transferir mais recursos para as Universidades públicas.
Fiquei perplexo com esta medida da proposta de OE 2019, e ainda mais com os argumentos usados para a defender: (supostamente) acolher às dificuldades de muitas famílias para financiar o ensino universitário dos seus filhos, especialmente os que se vêm obrigados a mudar de cidade de residência.
Se a universidade pública portuguesa fosse mesmo pública, ainda se conseguiria perceber até certo ponto esta medida; mesmo aí, em rigor estaria a acertar ao lado do verdadeiro problema – o da residência fora da casa da família –, atacando um problema que não existe – propinas demasiado elevadas nas universidade públicas. Mas em Portugal a universidade do Estado não é pública; é uma universidade só para alguns, só para uma reduzida elite de estudantes que consegue obter classificações suficientemente elevadas para aceder a um sistema cujo número de vagas é muito limitado. Aliás, o Estado acaba de reduzir as vagas em cursos de universidades fortes de grandes cidades, com elevada procura, para abrir mais vagas em cursos oferecidos por universidades periféricas, quer geograficamente quer cientificamente; numa palavra, a universidade do Estado acaba de se tornar ainda menos pública.
Na prática, a medida agora proposta aumenta a carga fiscal que incide sobre todas as famílias portuguesas – mais ou menos ricas, com ou sem filhos, com filhos na universidade pública ou com filhos em universidades privadas – para subsidiar as famílias com filhos que frequentam universidades do Estado, independentemente dos seus recursos. É difícil imaginar uma medida sobre propinas universitárias mais injusta.
Na prática, a medida agora proposta aumenta a carga fiscal que incide sobre todas as famílias portuguesas – mais ou menos ricas, com ou sem filhos, com filhos na universidade pública ou com filhos em universidades privadas – para subsidiar as famílias com filhos que frequentam universidades do Estado, independentemente dos seus recursos. É difícil imaginar uma medida sobre propinas universitárias mais injusta.
Num extremo da iniquidade, pense-se em famílias que pagam em apenas 2 meses por um filho que estuda numa Universidade privada o mesmo montante de propinas que pagam outras famílias por um filho a estudar numa universidade do Estado durante todo o ano lectivo, e ainda assim são chamadas a subsidiar as propinas dos filhos destas famílias; mas pode ainda ser pior: pense-se que aquelas até podem ter os seus filhos a estudar numa cidade diferente da dos pais, enquanto estas podem ter os seus filhos a estudar na própria cidade; pior ainda, aquelas podem ter rendimentos mais baixos do que estas, e ainda assim vão contribuir para subsidiar os estudos dos seus filhos (ainda que, felizmente, em menor proporção dada a progressividade do IRS).
Pode mesmo dizer-se que é bem provável que uma grande parte dos estudantes que frequenta a universidade do Estado vem de famílias com mais recursos financeiros, culturais, sociais – numa palavra, famílias que foram mais capazes de proporcionar aos filhos condições para obterem no liceu as classificações elevadas (em alguns casos elevadíssimas) que lhes permitiram integrar a elite que acede à universidade do Estado.
Em suma, esta medida proposta no OE 2019 não tem racionalidade económica – resulta em preços na Universidade pública ainda mais dissociados dos respectivos custos – e não resolve (e pode mesmo agravar) o problema social relevante – as dificuldades das famílias mais pobres para suportarem os custos da frequência de uma universidade, especialmente quando se situa noutra cidade daquela em que vive a família. O que verdadeiramente contribuiria para mitigar o problema seria, em primeiro lugar, aumentar o número de vagas nas universidades do Estado e, em segundo lugar, melhorar a acção social de apoio aos estudantes menos favorecidos; aumentar as bolsas para os mais carenciados, aumentar a oferta de residências universitárias. Mesmo com os riscos de fraude que sempre estão associados à intervenção do Estado e ao apoio social, medidas desse tipo teriam algum sentido; medidas como a que foi anunciada na proposta do OE 2019 não fazem qualquer sentido.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.