Lentos de coração

A quantidade de estímulos a que somos expostos parece crescer exponencialmente de dia para dia. E nós... continuamos a ser limitados

Não dá para ir a todas: é uma verdade difícil de aceitar, sobretudo (creio) para a minha geração e para as gerações seguintes. Não dá para ir a todos os programas, não dá para aceitar todos os convites que nos fazem, sejam eles mais ou menos apelativos. Não dá para conhecer toda a gente, saber tudo sobre todos ou ser tudo para todos. Não é possível estar a par de todas as notícias e as redes sociais são poços em que quilómetros de scroll não são suficientes para chegar ao fundo. Sofremos de um vírus chamado “FOMO” (Fear Of Missing Out): uma expressão utilizada para designar a ansiedade que vem da possibilidade de ficar de fora de alguma coisa, de não estar a par ou de perder algo.

Temos listas de livros para ler, filmes para ver, lugares para visitar, cursos para tirar, aventuras para viver e sonhos para cumprir. Os grupos de whatsapp proliferam como cogumelos e as mensagens de trabalho misturam-se com as piadas reencaminhadas, com as novidades da família e com os planos dos amigos. Não conseguimos cumprir todos os prazos, responder a tudo a tempo. A quantidade de estímulos a que somos expostos parece crescer exponencialmente de dia para dia.

E nós… continuamos a ser limitados. É verdade que também nos vamos adaptando, mas não a esta velocidade. Isto faz com que, muitas vezes, vamos vivendo em piloto-automático. Esquecemo-nos de que vivemos dentro do espaço e do tempo; de que a nossa energia é finita e a cabeça, o coração e o corpo também. A nossa agenda não estica e os nossos processos internos são lentos. E é fácil deixar a vida e as suas exigências a decidir por nós a forma como gerimos o calendário e por onde anda o nosso coração.

Esquecemo-nos de que vivemos dentro do espaço e do tempo; de que a nossa energia é finita e a cabeça, o coração e o corpo também.

Infelizmente, não tenho nenhuma receita para aprender a lidar com a tensão entre a nossa finitude e a velocidade a que tudo nos chega. Mas o que é que tudo isto me faz pensar?

  • Que bom!

Que bom não sermos super-homens e super-mulheres capazes de tudo e que bom não dar para ir a todas. Não nos bastamos a nós mesmos e precisamos muito uns dos outros e de Deus – ainda bem! Se assim não fosse, poderíamos passar pela vida sem que as relações fizessem parte do seu sentido. Não somos nós o Absoluto, não somos nós os salvadores.

Falo por mim e por muitos, senão por todos: ainda bem que o curso do mundo não depende (só) de mim – estaríamos tramados. Que descanso saber que não estamos entregues a nós próprios e que bonito é descobrir, nos nossos limites, lugares de encontro.

Que bom tomar consciência, também, de que o mundo é maior do que nós. Parece uma constatação disparatada de tão óbvia, mas é fácil esquecermo-nos do nosso tamanho minúsculo e do privilégio e beleza que é vivermos num mundo que nos transcende.

  • Mas isto não nos descarta das nossas responsabilidades

“Ninguém é insubstituível, mas ninguém é substituível”, disseram-me uma vez. Guardei esta frase. Não somos salvadores, mas não deixamos de ser colaboradores. Reconhecer os meus limites não é um passaporte para uma vida à minha medida e como me apetece: é antes o convite a reconhecer prioridades e a ser-lhes fiel. Não tenho de ir a todas, mas há sítios onde sou chamada a ir pelo meu próprio nome. Continuo a ser responsável por fazer a minha parte na construção do Reino, consciente do contributo que posso e devo dar com a combinação única dos meus talentos, da minha história, da minha forma de experimentar o mundo e de me relacionar com ele.

  • Por isso, é preciso vigiar os pequenos passos e as pequenas decisões

Quando temos de nos deslocar para algum lado, preferimos muitas vezes a opção mais rápida – queixamo-nos da pressa do mundo, mas é frequente esta começar connosco. Escolhemos o comboio de alta velocidade, quando podemos ganhar muito ao escolher o intercidades ou o regional: nestes, não deixamos de ir para onde temos de ir, mas as paisagens e os lugares não ficam tão desfocados, vamos fazendo mais paragens e é mais fácil ver por onde andamos.

Isto pede tempo, paciência e disponibilidade, é certo; mas viver assim, com menos pressa e com mais paragens, ajuda a perceber os “sins” e os “nãos” que somos chamados a responder. Ajuda a sermos mais sérios nas nossas escolhas. Aprendemos a aceitar que, quando dizemos “sim” a algum convite ou plano, estamos a dizer “não” a muitas outras coisas (estarmos conscientes de tudo isto talvez seja uma das doses da vacina anti-FOMO). E vamos aprendendo que os “nãos” devem ser dados sempre em função de um “sim” mais importante, e não porque não é conveniente ou não apetece.

Isto pede tempo, paciência e disponibilidade, é certo; mas viver assim, com menos pressa e com mais paragens, ajuda a perceber os “sins” e os “nãos” que somos chamados a responder. Ajuda a sermos mais sérios nas nossas escolhas.

E para onde aponta a bússola? Para o que nos ajudar a ter uma vida com mais esperança e que dá mais fruto, para o que nos tornar mais fecundos e nos abrir mais à alegria e beleza de viver – e tanto pode ser uma missão concreta, como tempo de descanso ou lazer.

  • Somos lentos de coração

Isto não se aprende de um dia para o outro, nem de uma vez para sempre. É fácil falar, mas difícil de pôr em prática. Por isso, também é preciso aceitar a nossa lentidão e aceitar que estes processos são para serem trabalhados durante a vida toda.

Muitas vezes, da mesma forma que o mundo vai pedindo de nós uma resposta e uma velocidade que não somos capazes de dar, também nós, injustamente, nos vamos tornando mais exigentes connosco e com os outros. Queremos uma resposta para ontem, queremos as coisas resolvidas, tudo imediato. Haja paciência.

Os meus amigos que me desculpem as mensagens que demorei a responder ou até deixei sem resposta. Desculpem os e-mails atrasados, os programas a que não fui ou aquilo que ingenuamente disse que ia fazer “até hoje!” e que ficou para o dia seguinte. E desculpem as minhas cobranças indevidas e por, às vezes, exigir respostas fora dos tempos certos. Estou a caminho!

Acredito que Jesus, quando disse aos discípulos de Emaús “Ó homens sem inteligência e lentos de espírito para crer em tudo quanto os profetas anunciaram!” (Lc 24, 25), não estava a exigir que estes fossem mais rápidos. Talvez quisesse que tomassem consciência dos seus limites e do tempo dos seus processos, da incapacidade para absorver tudo, compreender tudo, estar a par de tudo, cumprir tudo, ser tudo para todos. E, pacientemente, foi caminhando com eles e explicando o que ainda não tinham compreendido.

Por isso, reconhecendo e agradecendo a companhia de Jesus na nossa vida e a paciência que tem com cada um, sejamos pacientes connosco e pacientes com quem vai ao nosso lado. Estamos todos a aprender a lidar com os estímulos, os convites, as exigências, a velocidade do mundo e o tempo do coração; a descobrir o nosso lugar e para onde queremos caminhar; a aprender a tomar decisões e a ser comprometidos e fiéis.

Nada disto é simples, mas o caminho é incrivelmente belo e não estamos sozinhos. Saibamos desfrutar dos processos e dos seus ritmos: quando os aceitamos, crescemos melhor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.