Jesus de Nazaré, filho de Deus ou filho do carpinteiro?

A singularidade da vida, dos gestos e da pregação de Jesus põem em causa os fundamentos da consciência religiosa tradicional e visam a reconciliação do coração humano com a verdade de Deus. Por isso, é boa nova. Em Deus nada há a temer.

Quando se reaproxima o Natal, celebração cristã do mistério da encarnação do Verbo e da elevação espiritual de o que é humano, repropõe-se o tema da consciência que Jesus de Nazaré terá tido de si mesmo e do reconhecimento da sua identidade por parte dos discípulos. Ser “filho” dirá o mais íntimo de si. E de nós.

 

O problema

Que consciência teve Jesus de si mesmo e da sua história? Como compreendeu o plano salvífico de Deus e se compreendeu na relação com Ele? Enquanto homem, um judeu do século I, “filho do carpinteiro”, sabia que era de “natureza divina” e ter-se-á apresentado como “Filho de Deus”? Tendo crescido em estatura, viveu, também, exposto, como qualquer outro ser humano, à passagem da obscuridade e da ignorância à clareza e à consciência mais plena, tanto das coisas e dos acontecimentos, como de si mesmo, da sua íntima relação com o mistério de Deus e da sua missão? Como podemos compreender a subjetividade de Jesus «durante os dias da sua vida terrena» (Hebreus 5,7), tendo em conta que na pessoa do Verbo encarnado se dá a união, “sem mistura nem separação” (expressão do concílio de Calcedónia, em 451, que se debruçou especificamente sobre a identidade humana-divina de Jesus Cristo), entre a divindade e a humildade?

Durante muito tempo, a cristologia enfrentou a questão a partir de um modelo de compreensão estático e abstrato, muito afastado da dinâmica narrativa que encontramos nos evangelhos e da perspetiva histórica que passou a caracterizar os tempos modernos: a dado momento da história humana, o Verbo eterno de Deus fez-se homem, nascendo da Virgem Maria, por obra do Espírito Santo; duas naturezas (a essência ou estrutura permanente de qualquer ser), a divina e a humana, passam, então, a coabitar na pessoa do Verbo feito carne. Porém, tendencialmente, a balança tende a desequilibrar-se para o polo da divindade, em detrimento da real humanidade. Era necessário atribuir a Jesus o que é próprio da perfeição divina – a visão direta de Deus, sem interrupção, a participação na Sua omnisciência, a impossibilidade de errar. O conhecimento de Jesus não seria obtido gradualmente. Já desde o seio materno, teria um conhecimento imediato e completo de si mesmo. Mas, porque também é homem, era necessário atribuir-lhe um conhecimento adquirido a partir das experiências humanas. Resulta, assim, um Jesus que conheceria tudo, vivendo continuamente absorvido pela contemplação de Deus, mas que, às vezes, por condescendência para com a finitude humana ou para nos ensinar a humildade, representaria o papel de quem ignora. A única pessoa divina de Cristo, “reconhecido em duas naturezas”, parece oscilar, de forma dicotómica e artificial, entre as vezes em que conhece – e se reconhece – como Deus e as vezes em que conhece – e se reconhece – como homem, segundo se trate, ora de ações ou palavras que se devem atribuir à perfeição de Deus, ora de ações ou palavras que se devem atribuir à limitação humana.

A única pessoa divina de Cristo, “reconhecido em duas naturezas”, parece oscilar, de forma dicotómica e artificial, entre as vezes em que conhece – e se reconhece – como Deus e as vezes em que conhece – e se reconhece – como homem, segundo se trate, ora de ações ou palavras que se devem atribuir à perfeição de Deus, ora de ações ou palavras que se devem atribuir à limitação humana.

Com esta compreensão esquizofrénica de Jesus, assistimos a uma «paródia de humanidade», como afirmou J. Maritain, bem afastada do testemunho evangélico, mas, também, da síntese cristológica elaborada pelo Concílio de Calcedónia, quando declarou que Jesus Cristo, perfeito em divindade, é perfeito em humanidade, entendendo, assim, que não lhe faltou nada do que constitui qualquer ser humano – um tempo, um lugar, uma cultura, uma família, uma identidade sexuada.

 

O dado histórico e o exercício de memória crente

Demos um passo atrás para recordar um dado elementar que, creio, pode ajudar a projetar luz sobre muitas das questões que dizem respeito à identidade de Jesus e à sua respetiva compreensão. Importa ter presente que os evangelhos não são o relato cronológico da vida de Jesus, nem pretendem fazer o seu retrato psicológico. Não foram redigidos por testemunhas oculares que teriam registado momentos exatos da sua biografia, desde o nascimento até à ressurreição, passando pela vida pública e pela morte. São, sim, quatro versões, não sintetizáveis numa única, de um exercício de memória crente, a partir dos caminhos inéditos que a experiência da ressurreição de Jesus possibilitou, individual e comunitariamente, àqueles que o reconheceram vivo. Rigorosamente, Jesus não entrou na história quando nasceu (o próprio interesse pelo nascimento de Jesus é tardio em relação a outro material evangélico e só é referido nos evangelhos de Lucas e de Mateus), nem pertence à história, simplesmente, porque viveu. Jesus entra na história porque a sua ressurreição e a experiência dos seus frutos por parte daqueles que tinham vivido com ele e o tinham visto morto suscitou neles a fé, originando uma história de narração – um “rumor” como lhe chama o teólogo J. Moingt –, primeiro em forma oral e, depois, por escrito. Percebe-se, assim, como a identidade de Jesus não se colhe plenamente sem que se tenha em conta a dinâmica íntima entre o Jesus pré-pascal (o conhecimento do que disse e fez, referente histórico necessário, mas não suficiente para a adesão da fé) e o Cristo pós-pascal (o reconhecimento crente daquilo que Deus quis revelar na história efetiva de Jesus entre nós, a começar pela sua morte). Por isso, o movimento progressivo do seguimento pré-pascal não pode ser construído sem o movimento retrospetivo da retoma memorial pós-pascal da morte e da vida de Jesus. O que fora primeiro na ordem cronológica (nascimento, vida pública, morte…) torna-se segundo face ao reconhecimento memorial – a força reveladora dos gestos e das palavras de Jesus pede o reconhecimento da fé, à luz da Páscoa. A fé pascal reenvia, pois, aos lugares do conhecimento histórico (morte, vida pública, nascimento…) para colher neles o significado teológico. É este o exercício de memória crente, elaborado por cada um dos quatro evangelhos, de forma narrativa. Factos e sentido, conhecimento e reconhecimento, revelação e fé entrecruzam-se sem se poderem separar.

O que fora primeiro na ordem cronológica (nascimento, vida pública, morte…) torna-se segundo face ao reconhecimento memorial – a força reveladora dos gestos e das palavras de Jesus pede o reconhecimento da fé, à luz da Páscoa. A fé pascal reenvia, pois, aos lugares do conhecimento histórico (morte, vida pública, nascimento…) para colher neles o significado teológico. É este o exercício de memória crente, elaborado por cada um dos quatro evangelhos, de forma narrativa. Factos e sentido, conhecimento e reconhecimento, revelação e fé entrecruzam-se sem se poderem separar.

Retomando as questões iniciais, compreendemos que os evangelhos não foram escritos para nos informar sobre o que Jesus de Nazaré sabia sobre si mesmo, mas para nos dizer o que um discípulo deve reconhecer nele para colher e acolher a sua intencionalidade. É esta a chave que deve ser usada, por exemplo, para compreender os títulos evangélicos de Messias, Filho do Homem ou Filho de Deus, utilizados como marcas de reconhecimento da identidade de Jesus.

 

Os títulos cristológicos

O que nos dizem os relatos evangélicos acerca do modo como Jesus se compreendeu e como foi compreendido no plano salvífico de Deus? O biblista R. Brown sublinha como os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas podem ler-se em paralelo, isto é, de modo sinótico) testemunham amplamente a proclamação do Reino de Deus como o interesse que polariza os gestos e as palavras de Jesus de Nazaré. Se o que afirma sobre a vida futura ou sobre os sinais dos últimos tempos parece refazer-se a registos de compreensão correntes no seu tempo, o que se refere à realização do Reino reveste particular originalidade. Por exemplo, quando declara perdoados os pecadores ou quando manifesta uma liberdade inaudita em relação à Lei de Moisés. Do mesmo modo, os evangelhos concordam em apresentá-lo como homem que pensa e age no lugar de Deus, o que implica uma relação especial (por exemplo, Mt 11,27 e Lc 10,22; Mc 13,22; Mc 12,1-12), tão única que constitui a sua identidade. Não se trata, apenas, da relação entre Deus e um seu mediador, por meio de quem age na história, mas da relação em quem Deus age.

Como se teria referido Jesus a esta relação única com Deus e à missão que daí nasce? Um modo de entender estes títulos cristológicos atribui-os, diretamente, a Jesus enquanto designações já conhecidas nos círculos judaicos, no período pré-pascal. Outro modo considera-os como formulações nascidas inteiramente no período pós-pascal, como forma dos primeiros cristãos e comunidades traduzirem a identidade de Jesus revelada durante a sua vida e na sua morte. A via intermédia, talvez mais razoável, afirma que Jesus terá encontrado e usado determinadas formulações, ainda em estado incipiente, e que, combinadas entre si, poderiam explicitar a compreensão que tinha do plano divino para si e do seu lugar nele. O que os primeiros cristãos farão, depois de experiência pascal, passará pela reinterpretação e amplificação dessas formulações, de modo a clarificar a identidade de Jesus Cristo.

O que os primeiros cristãos farão, depois de experiência pascal, passará pela reinterpretação e amplificação dessas formulações, de modo a clarificar a identidade de Jesus Cristo.

Parece plausível afirmar que a ideia de Jesus como Messias tenha surgido durante a sua vida e que os discípulos o tenham confessado como tal, durante o tempo em que estiveram com ele. Porém, parece igualmente plausível afirmar que Jesus não tenha aceitado entusiasticamente esse título no sentido que lhe atribuíam os seus discípulos e os seus opositores, isto é, o de Messias que institui um reino terreno. Outro título evangélico que assinala a identidade de Jesus e que, exceto uma vez, nos Actos do Apóstolos 7,59, é sempre colocado na boca de Jesus, é o de Filho do Homem. É plausível que o retrato apocalíptico de «um ser semelhante a um filho de homem» (veja-se a referência no livro do profeta Daniel 7,13), exaltado por Deus, tenha feito parte da compreensão que Jesus teve do modo como a missão de Deus se realizava nele – centralidade da relação filial e da exaltação divina. Sobre o título Filho de Deus, parece inquestionável que, desde as primeiras décadas, a Igreja primitiva tenha confessado Jesus como Filho de Deus, entendendo afirmar a relação filial única de Jesus com Deus, a quem chamava Pai. Com a mesma segurança se deve afirmar que Jesus não terá usado este título para si mesmo e que não se lhe pode atribuir uma consciência da sua identidade divina em termos trinitários, precisamente, porque, para um judeu do século I, seria impensável alguém poder identificar-se com Deus. Só a experiência Pascal dará lugar à reformulação da relação filial entre Jesus e Deus Pai, o que implicará a maturação da compreensão e da redefinição da noção de Deus em termos trinitários.

Sendo Jesus de Nazaré este galileu do século I e não uma ideia de homem, sem corpo nem tempo e lugar, a consciência que terá tido de si mesmo, da sua relação com Deus e da sua missão, não se compreenderia fora da experiência típica da fé de Israel. É dentro desta tradição que se situa e é a partir desse lugar que revelará a originalidade e autoridade dos seus gestos e das suas palavras. Ora, este homem tem consciência de ser constituído pelo advento escatológico do Reino de Deus. É o Reino que Jesus anuncia, não a si mesmo. Vive esquecido de si para viver para Deus e para a ação salvadora de Deus na história de doentes e marginalizados. A consciência que tem de si identifica-se com a consciência que tem de Deus. Se era o Cristo, o Filho do Deus vivo, não o era, primeiro que tudo, porque o sabia, mas porque conhecia Deus como Pai e se reconhecia nessa relação, com tudo o que ela significa de único e de inefável – afeto filial, intimidade, obediência. Na mesma íntima comunhão com Deus, a quem chama Pai, se pode ver amadurecida a interpretação que Jesus terá feito da sua morte. É o Reino de Deus que constitui o motivo central para a disposição de si diante de Deus, mesmo que esse comporte uma obscuridade acerca da morte como lugar de necessária passagem. Mais uma vez, será a fé pascal a reconhecer, com clareza, que o Reino devia vir pela vida e pela morte de Jesus de Nazaré.

O que antes se disse permite compreender como a identidade de Jesus se revele em duas modalidades distintas, mas inseparáveis: no período pré-pascal, a divindade de Jesus é revelada implicitamente na sua humanidade; com o acontecimento da ressurreição, a humanidade de Jesus e o lugar mais improvável da sua manifestação, a cruz, é compreendida explicitamente à luz da glória divina.

O que antes se disse permite compreender como a identidade de Jesus se revele em duas modalidades distintas, mas inseparáveis: no período pré-pascal, a divindade de Jesus é revelada implicitamente na sua humanidade; com o acontecimento da ressurreição, a humanidade de Jesus e o lugar mais improvável da sua manifestação, a cruz, é compreendida explicitamente à luz da glória divina.

 

Inteligência teológica da consciência filial de Jesus

Atendendo aos relatos das aparições de Jesus Ressuscitado, verificamos a interligação entre o dado da realidade e a necessidade da descodificação do sentido. A evidência do que se dá a ver e a tocar – «vede as minhas mãos e os meus pés, sou eu» (Jo 24,39) – coloca os discípulos diante de uma evidência simbólica: o acto intencional do Ressuscitado solicita a decisão dos discípulos de acolher a verdade que aí se quer manifestar. A identificação física de Jesus não é suficiente. De facto, os discípulos veem e ouvem, mas não reconhecem que é Jesus. No entanto, o reconhecimento a que são conduzidos não terá lugar sem referência à realidade histórica. Mas o crédito conferido a Jesus como revelação da verdade de Deus não resulta imediatamente, nem da história de Jesus nem das aparições do Ressuscitado e, ainda menos, de uma experiência mística do divino ou de uma simples interpretação apostólica da experiência histórica. Resulta, sim, da evidência efetiva da intenção de Jesus. Não se trata, simplesmente, de ver ou de não ver, mas de ver segundo a intenção daquele que se mostra.

Mas o crédito conferido a Jesus como revelação da verdade de Deus não resulta imediatamente, nem da história de Jesus nem das aparições do Ressuscitado e, ainda menos, de uma experiência mística do divino ou de uma simples interpretação apostólica da experiência histórica. Resulta, sim, da evidência efetiva da intenção de Jesus. Não se trata, simplesmente, de ver ou de não ver, mas de ver segundo a intenção daquele que se mostra.

Se o crédito afetivo concedido a Jesus e a evidência teológica exposta na sua manifestação se realizam no reencontro com o Ressuscitado, é a morte de Jesus o lugar de passagem necessária no exercício da memória de Jesus. Contra todas as resistências religiosas e contra todos os preconceitos interpretativos, o escândalo da cruz apresenta-se como o lugar incontornável para sintonizar com a intencionalidade de Jesus e, assim, acolher nele a revelação da verdade de Deus. Se a trama narrativa dos evangelhos não cessa de repetir a verdade teológica de Jesus no seu aparecer histórico, é na paixão e na morte que se é confrontado com o extremo da fidelidade de Jesus a essa mesma verdade. A tensão entre Jesus e os seus discípulos, de que os evangelhos fazem prova, mostra claramente a transformação religiosa provocada pela aceitação da morte por parte de Jesus. No episódio dos discípulos de Emaús, em Lucas 24, verificamos como o cerne da repreensão de Jesus aos dois discípulos não está em não terem acreditado no anúncio de que ele estava vivo, mas na incompreensão da palavra da Escritura que anunciava a sua morte. O centro da incredulidade é identificado, precisamente, na recusa em identificar a morte de Jesus como o lugar de atestação da sua identidade e da verdade do próprio Deus. Por isso, se os discípulos queriam identificar e acolher a verdade de Jesus, precisavam necessariamente de olhar para o crucificado como “lugar” da revelação de Deus.

Se a trama narrativa dos evangelhos não cessa de repetir a verdade teológica de Jesus no seu aparecer histórico, é na paixão e na morte que se é confrontado com o extremo da fidelidade de Jesus a essa mesma verdade. A tensão entre Jesus e os seus discípulos, de que os evangelhos fazem prova, mostra claramente a transformação religiosa provocada pela aceitação da morte por parte de Jesus.

Mas qual é exatamente a verdade de Deus revelada plenamente na morte de Jesus? Parafraseando o teólogo P. Sequeri, Deus é dom incondicional de si pela vida dos outros. Ser dom de si, sem condições, gerando vida fora de si, é esta a verdade de Deus. E é esta a Sua justiça. Fora da dedicação incondicional a um outro, próximo ou afastado, amigo, estrangeiro ou inimigo, não se está na verdade de Deus, porque a verdade que Deus é não é separável da sua realização como justiça. A verdade de Deus é a Sua justiça, isto é, o dom de Si sem condições pela vida de cada homem e mulher, inimigos incluídos.

O cuidado de Deus pelo ser humano é a linha que dá unidade à vida e à morte de Jesus. Os seus gestos e as suas palavras (veja-se, por exemplo, Lc 4, 16-22 e Lc 7, 18-23) testemunham a certeza no absoluto cuidado que Deus devota a cada fenómeno deste mundo e na Sua absoluta dedicação à existência de cada ser humano: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam; as prostitutas são reintegradas, os paralíticos abandonam as suas enxergas; os pecadores sabem que as torres não caem como castigo dos pecados de alguém nem o fogo é lançado sobre aqueles que não creem; os impuros podem tocar o sagrado sem pedir autorização.

Por ser tão seguro desta verdade de Deus, o Abbà, com a qual sente uma relação única de Filho, Jesus submete-se à morte para que essa verdade não seja posta em causa por qualquer forma de arbítrio impositivo ou de estratégia sedutora e a longa tradição teológica que associa Deus ao domínio violento seja desmascarada e vencida. Na verdade, a associação entre a verdade de Deus e as formas de dominação histórica é tão antiga e enraizada na mentalidade religiosa quanto Adão e Eva. Contra a tradição de projetar em Deus, indistintamente, a vida e a morte, a salvação e o sacrifício, a bênção e a maldição, Jesus não aceita ver-se legitimado como vencedor do mal, nem pela força da violência exercida contra outros nem pela força da sedução que atrai a atenção do outro sem o compromisso sério de uma adesão livre. Pelo contrário, a verdade de Deus revelada em Jesus coincide com o envolvimento, desarmado e incondicional, na eliminação de toda a forma de mal em favor de todo o ser humano. São os gestos de cuidado e dedicação que tornam evidente a verdade de Deus, porque Deus é cuidado.

A singularidade da vida, dos gestos e da pregação de Jesus põem em causa os fundamentos da consciência religiosa tradicional e visam a reconciliação do coração humano com a verdade de Deus. Por isso, é boa nova. Em Deus nada há a temer. De Deus nenhum mal há a esperar. A verdade de que Deus é dom, não domínio nem sedução, encerra a relação íntima entre Jesus e o Pai e constitui o critério hermenêutico que dá coerência à sua vida e à sua morte na cruz. E é com ela que o ser humano é convidado a confrontar-se livremente.

O Deus de Jesus é dom incondicional de si pela vida do ser humano e esta identidade constitui a sua unicidade e a sua diferença em relação à ambiguidade da tradição religiosa. Mas tal verdade-justiça vem à luz apenas pela confissão cristológica da identidade de Jesus como princípio de tal dedicação. A fé-que-salva é o reconhecimento e a adesão livre à verdade-justiça de Deus atestada em Jesus. A este movimento chamamos “conversão”.

Jesus é, pois, a condição originária, não ulteriormente mediada, para que a figura da fé-que-salva-o-ser-humano permaneça idêntica ao saber-a-verdade-de-Deus. O cânone cristológico consiste no reconhecimento de que Deus é Pai de Jesus (é este o coração do mistério trinitário: Deus é em Si mesmo ato de gerar) e de que o fundamento absoluto da salvação se manifesta na dedicação incondicional à vida do outro. A pretensão de Jesus é identificada no vínculo a esta verdade como sendo a própria vida de Deus e a justificação de toda a vida humana. Fora dessa dedicação não há vida divina. Fora dessa dedicação não há (verdadeira) vida humana. A salvação significa, realmente, salvação da vida humana: resgate da vida submetida a medos e fantasmas; resgate do desespero diante de relações falhadas; resgate da mortificação causada pelos afetos não reconhecidos e pelos laços de fidelidade quebrados; resgate da maldade do mal que poderia ser evitado e não o é, e da projeção da origem dos nossos males e sofrimentos em Deus; resgate do receio de não ver a existência reconhecida e os desejos mais íntimos atendidos. Por isto, a fé-que-salva-a-vida, dada por Cristo a cada ser humano, é a conversão à verdade do Abbà-Deus que cuida da vida, fé instituída historicamente como apropriação da relação filial com Deus que caracteriza Jesus.

Por isto, a fé-que-salva-a-vida, dada por Cristo a cada ser humano, é a conversão à verdade do Abbà-Deus que cuida da vida, fé instituída historicamente como apropriação da relação filial com Deus que caracteriza Jesus.

O reconhecimento da verdade de Deus não acontece fora de uma tomada de posição sobre a justiça do agir de Jesus, tal como a credibilidade concedida a esta justiça não é reconhecida senão por um laço digno de confiança suscitado pela verdade revelada. Na formulação Deus é dedicação, a vida de Jesus (dado histórico da experiência pré-pascal) e a cristologia confessante (a identidade definida dogmaticamente, no movimento pós-pascal) coincidem. Negar a dedicação incondicional (a justiça) significaria negar Deus (a verdade). Afirmar a fé em Jesus e na sua consciência filial significa afirmar o conhecimento de Deus como Pai.

A fé dos discípulos em Jesus reflete, assim, a consciência de Jesus, compreendida como confiança total no Pai, com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças, mesmo sob o risco da morte. Ora, os discípulos entenderam que a confiança de Jesus também podia ser a sua confiança. Por isso, na relação com a história de Jesus, revisitada a partir da ressurreição, reconhecem-no e honram-no na sua relação particular e única com a origem divina, chamada Abbà pelo próprio Jesus, fundamento de todo o resgate e realização do ser humano.

A formulação cristológica da encarnação do Verbo (por exemplo, Fil 2,6-11 ou Jo 1,1-18) não é mais do que a afirmação da disposição em aceitar pensar Deus como Pai de Jesus, segundo a intenção do próprio Jesus, isto é, nas palavras do teólogo P. Sequeri, segundo a «certeza de poder identificar a verdade de Deus como figura do amor que aceita ser confundido com a impotência para que não se transformasse em domínio». Jesus, porque é Filho, pode atestar que Deus é digno de confiança, uma vez que a Sua verdade consiste na justiça dos nossos afetos mais íntimos e dos nossos desejos mais sinceros. O que a consciência humana não poderia confirmar nem garantir por si mesma, isto é, o cumprimento do desejo ilimitado de vida, é dado na revelação cristológica: Deus, o fundamento e o horizonte da vida, não Se impõe como uma necessidade nem Se disfarça como uma astúcia, mas quer ser acolhido na confiança, na medida em que for reconhecido, afetiva e efetivamente, digno de confiança.

Na consciência de ser filho amado e livre decide-se a identidade de Jesus. E a nossa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.