Gaza grita. A Humanidade não pode calar-se - Ponto SJ

Gaza grita. A Humanidade não pode calar-se

Peço uma paz desarmada de interesses que não sirvam o bem comum, e desarmante ao ponto de converter os corações mais duros. Às armas, ao ódio e à divisão, respondamos com mais oração, mais diálogo fraterno e mais participação cívica.

Há mais de um ano que, todos os dias, nos chegam imagens angustiantes da Faixa de Gaza. A guerra, que dura desde o final de 2023, teve início após os horrendos ataques terroristas da responsabilidade do Hamas, que vitimaram cerca de 1.200 cidadãos israelitas inocentes, a 7 de outubro desse ano. Hoje, pelo menos 50 pessoas permanecem como reféns, num sofrimento inimaginável para os próprios e para as suas famílias.

Qualquer nação tem direito a defender-se perante este tipo de ataques, e o que se passou naquele festival de música, em que o Hamas atacou milhares de pessoas inocentes, é, sem dúvida, uma barbárie. Mas aquilo a que estamos a assistir — até custa dizer a palavra, mas é isso que estamos todos a fazer — excedeu gravemente os critérios de legítima defesa e proporcionalidade. Durante o seu pontificado, o Papa Francisco atualizou a Doutrina Social da Igreja, ao afirmar que nunca há uma guerra justa no sentido pleno e, mesmo reconhecendo que há situações em que pode haver legítima defesa, os critérios têm que ser muito exigentes e a proporcionalidade é central. Ora, em Gaza, a resposta de Israel tornou-se uma barbárie que continua num crescendo de desproporcionalidade desmedida. Sempre sustentada em argumentos que validam o tipo de atuação por parte do governo israelita, provocou, e continua a provocar, a morte de várias dezenas de milhar de palestinianos inocentes. E tem assentado em práticas que se qualificam como crimes de guerra e contra a humanidade, com o alvo sistemático de civis indefesos e a recusa de fornecimento de água e alimentos necessários à sobrevivência das pessoas que ali vivem. Como é possível negar-se ajuda humanitária a quem tem fome e sede e corre risco de vida? Nem a um criminoso, quanto mais a um inocente!

As estimativas indicam que já morreram 55.000 palestinianos, havendo ainda milhares de desaparecidos. A UNICEF reportou que, desde 7 de outubro de 2023, pelo menos 14.500 crianças foram mortas na Faixa de Gaza — uma média de cerca de 32 crianças por dia! E o stress extremo, o trauma agudo e as falhas no suporte médico continuam a gerar mortes todos os dias. Estes números podem anestesiar-nos, como em tantos outros casos, e até, por defesa, impedir-nos de perceber mais profundamente o que representam. Mas o que está em causa é horrendo! São futuros negados ou comprometidos, famílias destruídas, feridas que levarão gerações a sarar, rancores e ódios que perpetuarão o ciclo de violência. E, em muitos casos, é uma morte lenta, em vida, causada pela fome e pelo desespero…

Como tantas vozes internacionais que se fazem ouvir cada vez mais alto, como é possível continuar a ignorar aquele que parece ser o propósito de eliminação e deportação coletiva da população residente na Faixa de Gaza por parte do governo israelita, com o apoio do governo norte-americano?

Como tantas vozes internacionais que se fazem ouvir cada vez mais alto, como é possível continuar a ignorar aquele que parece ser o propósito de eliminação e deportação coletiva da população residente na Faixa de Gaza por parte do governo israelita, com o apoio do governo norte-americano? E que chocante ver o Presidente de uma das nações mais poderosas do mundo divulgar um vídeo sobre Gaza transformada num resorte turístico perante um cenário abjeto de destruição e dor. Um exemplo da total falência de valores…

Como alerta a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) na sua mais recente nota sobre a situação que se vive em Gaza, a estratégia do governo de Israel é um erro tremendo que não favorece a libertação dos reféns israelitas, nem evitará a adesão de muitos palestinianos ao Hamas. E ainda menos contribui para que, no futuro, os povos desta região possam viver em paz e segurança.

Não podemos viver num tempo em que só se pode assumir uma dimensão da realidade, como se fôssemos obrigados a entrincheirar-nos numa barricada. Esse é o princípio da divisão. Tem de ser possível dizermos que é imoral o que fez o Hamas e é imoral o que está a fazer Israel. Simultaneamente, são inaceitáveis as manifestações de ódio contra o povo judeu, assim como é inaceitável que criticar as políticas do governo de Israel em Gaza signifique que somos antissemitas. Somos pela paz! É pela paz que somos. E por isso, esta denúncia é partilhada por muitas pessoas de fé e cultura judaicas, e por muitas outras, de contextos culturais e políticos diversos. Não podemos calar a denúncia e deixar de fazer o que está certo por medo de assumir a complexidade e a tensão da realidade. Esse medo tem paralisado caminhos de paz e tem sido responsável por fomentar radicalismos simplistas a que estamos assistir também em Portugal. Do mesmo modo, o critério para denunciarmos a violência e a injustiça não pode ser a vantagem económica ou o medo de romper relações. Não há relações verdadeiras sem verdade. E uma economia que fomenta e se alimenta da guerra é uma economia que prejudicará todas as pessoas.

É por isso urgente que mais vozes políticas, institucionais e eclesiais repudiem as práticas desumanas e desrespeitadoras do Direito da guerra, neste e em qualquer outro conflito. E é imperativo, como pede a CNJP na nota referida, que os governos da União Europeia, em particular o governo português, tomem ações concretas de suspensão da cooperação com o governo de Israel, sob pena de incoerência com os princípios de defesa dos direitos humanos que nos regem. Precisamos de mais pessoas com a coragem de pedir, de exigir, o que é mais justo, ainda que pareça uma utopia — tal como a solução de reconhecimento de dois Estados, que correspondam aos direitos dos povos israelita e palestiniano, defendida pelo secretário-geral das Nações Unidas.

O mundo registou, no ano passado, o maior número de conflitos armados desde 1946, ultrapassando o recorde de 2023, segundo o Instituto de Investigação da Paz de Oslo. Perante um mundo mais violento e dividido, o lado certo da história é sempre o lado da justiça e da paz. Como escreveu o Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti:

Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota diante das forças do mal.” (Fratelli Tutti, n.º 261)

Há um grito que sai de Gaza e que contém a dor de todos os que vivem em contextos de guerra. É o grito das mães, dos pais, dos irmãos, das crianças, dos que se sentem órfãos, abandonados, esquecidos. A esse grito temos de juntar o nosso clamor e gritar com eles e por eles. E todas as comunidades religiosas — em particular a comunidade católica — têm, como lembra a CNJP, uma responsabilidade acrescida em dar testemunho de que a fé não pactua com a indiferença nem com a violência, mas é caminho de reconciliação, justiça e compromisso com a dignidade de todos os seres humanos.

Para que o mundo esqueça a arte da guerra, precisamos de uma paz que seja encarnada e não viva apenas de dias de tréguas. Inspirada nas palavras recentes do Papa Leão XIV, peço uma paz desarmada de interesses que não sirvam o bem comum, e desarmante ao ponto de converter os corações mais duros. Às armas, ao ódio e à divisão, respondamos com mais oração, mais diálogo fraterno e mais participação cívicas.

Na sequência da nota publicada sobre a situação que se vive na Faixa de Gaza, a Comissão Nacional Justiça e Paz propõe que, ao longo do mês de Junho, e em jeito de oração, juntemos a voz das nossas comunidades cristãs a todas as pessoas de boa vontade, dizendo, bem alto:

Escuta, Israel, o clamor que se ergue do pedaço de terra que transformaste em campo de concentração.

O clamor daqueles que se encontram reféns de terroristas e às mãos da tua cólera desmedida.

Escuta, Israel, a voz do Senhor Nosso Deus que te manda ter piedade do órfão e da viúva.

Lembra-te, Israel, de como o nosso Pai Abraão se abeirou do Altíssimo para lhe pedir clemência da cidade inteira ainda que nela apenas houvesse dez homens justos. “Destruirás o justo com o injusto?” (Gn 18, 23). E lembra-te de como por causa dos dez justos o Senhor poupou Sodoma (Gn 18, 31).

«A misericórdia e a verdade vão encontrar-se, vão beijar-se a paz e a justiça; da terra há de brotar a verdade, e a justiça espreitará do céu» (Sl 85, 11-12).

Não mais sangue, Israel. Não mais sangue. «A força de um rei está em amar a justiça» (Sl 99, 4). Não em aniquilar, nem mesmo os inimigos.

Lembra-te, Israel, dos duros cativeiros que sofreste e não queiras pagar o mal com o mal, nem curar as tuas feridas com crueldade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.