No passado dia 18 de março, o Presidente da República decretou o estado de emergência, um regime constitucional de exceção, nunca antes utilizado em democracia, no qual alguns direitos fundamentais podem ser suspensos e poderes especiais são atribuídos ao Governo para enfrentar uma situação especialmente grave. No seu discurso, Marcelo Rebelo de Sousa – tal como outros líderes mundiais – não hesitou em falar do momento que estamos a viver como de uma guerra. Mas estamos mesmo?
Por um lado, não posso deixar de valorizar a importância de um discurso forte, que ajude a tomar consciência da gravidade e do carácter excecional da situação que enfrentamos. Diante de uma doença que se propaga a grande velocidade e de forma invisível, já que muitos portadores não apresentam sintomas, era – e certamente ainda é – essencial contrariar uma aparente sensação generalizada de segurança (por sinal até há pouco tempo amplamente alimentada pelo discurso oficial). Ao “declarar a guerra” ao covid-19 está-se a passar uma mensagem contundente que, se levada a sério, pode ser determinante para contrariar os efeitos devastadores que pode ter para o sistema de saúde, como bem mostra a situação no norte de Itália: não, não se trata de uma “gripezinha” um pouco mais forte!
O discurso bélico permite, por outro lado, apelar à mobilização de todos os recursos e vontades para o combate à epidemia, direta e indiretamente. A gravidade da situação exige que sejam postos à disposição de quem está “na linha da frente” o máximo de meios, nomeadamente apelando à criatividade (e generosidade!) de empresas, laboratórios, prestadores de serviços, agentes de saúde reformados ou ainda não completamente formados e, em geral, de toda a boa vontade e competência pertinentes para responder à emergência. Mas, tal como numa guerra, é também toda a população que é “mobilizada”, neste caso – paradoxalmente – para ficar em casa, abdicando do seu estilo de vida e, para muitos, do seu ganha-pão…
Enfim, a imagem da guerra, realidade de que certamente poucos de nós terão conhecimento direto, convida-nos a pôr em perspetiva e relativizar a importância dos diversos elementos que compõem a nossa vida. Estamos diante de uma situação completamente nova, na qual as nossas necessidades superficiais, as divergências fúteis, e até os gestos habituais de amor e proximidade têm de ser postos de lado, em nome de um bem maior, a saúde de todos, em especial dos mais frágeis.
Estamos diante de uma situação completamente nova, na qual as nossas necessidades superficiais, as divergências fúteis, e até os gestos habituais de amor e proximidade têm de ser postos de lado, em nome de um bem maior, a saúde de todos, em especial dos mais frágeis.
No entanto, apelar ao imaginário da guerra traz consigo questões e levanta algumas preocupações que não podem deixar de ser tidas em conta. Em primeiro lugar, o uso da metáfora corre o risco de relativizar também o nosso olhar sobre aqueles que vivem verdadeiramente em guerra, vítimas da violência, da destruição e da penúria, em conflitos marcados pelo ódio étnico, religioso ou social. Por respeito por quem convive com a guerra, tenhamos, no mínimo, pudor em recorrer a este vocabulário…
Por outro lado, se estamos em guerra, quem é o inimigo?.. Atribuir tal qualificação a um vírus não é necessariamente pertinente, para lá do efeito “jornalístico”. Claro que as doenças se devem combater (melhor ainda seria prevenir), mas não como quem luta com um igual. Na verdade, a luta que estamos a viver tem um objetivo “positivo” que é a saúde coletiva e individual, mais do que um alvo a abater. Fazer de um pedaço de RNA – que os biólogos discutem se qualificar como ser vivo – o “inimigo” pode colocar-nos numa perspetiva de separação radical do mundo natural que, a longo prazo, dificulta mais ainda a nossa auto-compreensão como parte de uma casa comum.
Para mais, é muito pouco provável que o discurso da guerra seja apto a fomentar a unidade de uma “aliança” de todos na batalha contra a covid-19. Aquilo a que temos assistido nas últimas semanas, infelizmente, é a multiplicação de desconfianças e desconsiderações, entre países, em relação a organismos internacionais, entre os diversos atores políticos. O grande problema da “guerra” é que esta fomenta inevitavelmente a suspeita generalizada: o vizinho é sempre potencial colaborador do inimigo. Neste momento, mais do que de trocas de acusações, a resposta à epidemia necessita de coordenação e colaboração, entre pessoas, entre instituições, entre Estados. A alternativa é o “salve-se quem puder” a que, em certa medida, estamos já a assistir, seja na gestão do material e equipamento médico, seja na resposta financeira e económica à situação (há dias pude ler no mesmo jornal um artigo a condenar a exportação de kits de diagnóstico da covid-19 e outro a manifestar indignação porque material de proteção médica tinha sido retido na fronteira de outro país).
Por último, acredito que convencer-nos de que estamos a viver uma guerra pode bloquear a nossa capacidade de retirarmos algo desta experiência. Felizmente, no final desta crise não teremos de reconstruir casas, estradas e equipamentos, mas nem por isso deveríamos simplesmente regressar, sem mais, ao estado de coisas anterior. Este tempo de provação coletiva pode (deve?) ensinar-nos algo acerca do que é essencial e do que é supérfluo, um estilo de vida em que o “encontro” – que hoje tanta falta nos faz – volta a ser o centro, um modo de usar a tecnologia que ajuda e não substitui a relação…
A tradição espiritual conhece e valoriza a ideia/imagem de luta que, talvez, seja mais adequada para falar deste tempo, de dificuldade mas também de desafio, que nos convida a sermos, cada um, melhor pessoa e, todos juntos, melhor sociedade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.