A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Com grande poder, os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e uma grande graça operava em todos eles. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse. (Act 4, 32-35)
É assim que se apresenta na Bíblia o estilo de vida seguido pelas primeiras comunidades cristãs. Inspirados pelo exemplo d’Aquele que seguiam e pela Sua palavra, a preferência pelos necessitados convidava cada um ao despojamento, a uma vida centrada no essencial, à procura de uma vida digna para todos. O “norte” para o qual apontavam estava bem definido, e são inegáveis os méritos dos objetivos que este tipo de vivência procurava alcançar.
É impossível não reparar em como todos dispunham dos seus bens em prol dos outros: “Tudo entre eles era comum”. Obviamente, não há nada que indique que estas comunidades tenham sido absolutamente perfeitas na vivência deste espírito comunitário único, e o mais provável é que não o tenham sido. Apesar disso, o contraste entre esta vivência comunitária e a vivência contemporânea da nossa sociedade é evidente, e é natural sentirmo-nos desafiados pelo mesmo.
Este desafio é reforçado se atentarmos à forma como Jesus apontou o caminho a um jovem rico que lhe perguntou o caminho para alcançar a vida eterna (Mt 19, 16-24). Primeiro, incitou ao pleno cumprimento de todos os mandamentos, ao que o jovem respondeu que os cumpria desde sempre. Mas eis que ele Lhe lança uma nova questão: o que me falta ainda?
A resposta de Jesus é avassaladora: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-Me.” Vendo como o jovem se afastou entristecido, acrescentou ainda, junto dos discípulos, que “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino do Céu”.
Estas palavras de Jesus são dirigidas a todos nós. Não em termos materiais, mas sim na ânsia de encontrar um sentido para a nossa vida junto de Deus, todos nos tornamos “jovens ricos” que Lhe gostariam de perguntar qual é o caminho para a vida eterna. E todos receberíamos uma resposta semelhante: cumpre os mandamentos e dispõe dos teus bens junto dos mais pobres. Naturalmente, cabe a cada um refletir sobre a forma como a radicalidade da proposta de Jesus se aplicaria na sua vida em concreto. Com que pressupostos devemos partir, então, para esta nossa reflexão? E que caminhos propõe a Igreja neste sentido?
Estas palavras de Jesus são dirigidas a todos nós. Não em termos materiais mas sim na ânsia de encontrar um sentido para a nossa vida junto de Deus, todos nos tornamos “jovens ricos” que Lhe gostariam de perguntar qual é o caminho para a vida eterna. E todos receberíamos uma resposta semelhante: cumpre os mandamentos e dispõe dos teus bens junto dos mais pobres.
O pressuposto essencial do qual devemos partir, formulado na Doutrina Social da Igreja (DSI), é o do Princípio da Destinação Universal dos Bens:
“Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade”. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, §174)
A mensagem que se pretende passar é clara. Tudo é de todos. De todos os que vivem agora, de todos os que já viveram e de todos os que viverão. A nós, que vivemos agora, cabe-nos a missão de assegurar que os bens de que dispomos no presente e que recebemos de graça serão usufruídos por todos e que chegarão às gerações futuras da mesma forma que chegaram a nós. E este usufruto dos bens é essencial para que todos possam viver a vida em toda a sua plenitude.
Deste modo, se todos os bens são de todos, em que dimensão é que a propriedade privada pode ocorrer com legitimidade? E quais são os seus limites? Partindo de referências a outros documentos eclesiais, é também na DSI que podemos encontrar as origens e motivações para a propriedade privada:
Mediante o trabalho, o homem, usando a sua inteligência, consegue dominar a terra e torná-la sua digna morada: «Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual». A propriedade privada, bem como as outras formas de domínio privado dos bens, «assegura a cada qual um meio absolutamente necessário para a autonomia pessoal e familiar e deve ser considerada como uma prolongação da liberdade humana, constitui uma certa condição das liberdades civis, porque estimula ao exercício da sua função e responsabilidade». (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, §176)
Facilmente se pode depreender que a propriedade privada é um dos meios que temos à disposição para cumprir com o fim que nos é proposto no Princípio da Destinação Universal dos Bens, sendo inerente à nossa condição de seres livres e sendo também dignificante do trabalho humano, ao ser adquirida com os frutos deste.
Mas este direito constitui um meio, e não um fim. Embora todos tenhamos direito a ser proprietários deste bens que nos foram confiados, nem todos o somos (embora não tenhamos obrigatoriamente de o ser). Embora todos tenhamos o direito a ser proprietários, nem todos usufruímos desse direito de forma justa. Há muitos que o vivem de forma abusiva, privando outros do direito ao acesso aos bens a que têm igual direito e, assim, ao acesso a uma vida digna e plena. Como afirmava São João Crisóstomo, “não fazer os pobres participar dos próprios bens, é roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos”.
É precisamente sobre este desrespeito da hierarquia entre o Princípio da Destinação Universal dos Bens e os demais direitos que o Papa Francisco notou a ocorrência de muitas situações em que “os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática” (Carta Encíclica Fratelli Tutti, §120). É neste caminho que entramos ao absolutizar direitos como o direito à propriedade privada em detrimento do princípio fundamental que nos norteia. Este aspeto é também enunciado muito diretamente na DSI, onde se afirma que “A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável: pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, §177)
A tensão entre o direito à propriedade privada e Princípio da Destinação Universal dos Bens é, como se nota, bastante evidente. É uma tensão que sempre existiu e existirá, não existindo uma fórmula mágica que cause a sua resolução definitiva. Mas há, contudo, um caminho onde podemos encontrar o ponto de equilíbrio. E ao voltarmos à passagem dos Atos dos Apóstolos com que se abriu este artigo, este torna-se evidente: o caminho da solidariedade.
A tensão entre o direito à propriedade privada e Princípio da Destinação Universal dos Bens é, como se nota, bastante evidente. É uma tensão que sempre existiu e existirá, não existindo uma fórmula mágica que cause a sua resolução definitiva. Mas há, contudo, um caminho onde podemos encontrar o ponto de equilíbrio. E ao voltarmos à passagem dos Atos dos Apóstolos com que se abriu este artigo, este torna-se evidente: o caminho da solidariedade.
Esta é, provavelmente, uma palavra já tida como gasta ou banal, que soa a mais do mesmo. Mas é importante voltarmos a dar-lhe o espaço, importância e vitalidade que lhe é devida. Pois é na solidariedade que encontramos a chave para traçar o caminho de convivência entre as duas realidades que constituem esta tensão. É através da solidariedade que, da mesma forma livre com que adquirimos os nossos bens, os podemos colocar ao dispor daqueles que não têm acesso àquilo que necessitam para viver uma vida plena e, assim, fazer-lhes justiça. Pois é em justiça que resultam as nossas obras para com os mais necessitados: tal como afirmava São Gregório Magno, “quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes pertence”. Esta afirmação só poderá ser entendida em toda a sua plenitude ao termos presente o Princípio da Destinação Universal dos Bens.
Contudo, optar pela solidariedade não é um caminho fácil. Tal como nos diz o Papa Paulo VI, o despojamento dos bens em favor dos outros exige “grande generosidade, muitos sacrifícios e esforço contínuo. Compete a cada um examinar a própria consciência, que agora fala com voz nova para a nossa época”. No mesmo texto, de 1967, são também concretizadas várias dimensões do desafio que a solidariedade pressupõe: “Estará o rico pronto a dar do seu dinheiro, para sustentar as obras e missões organizadas em favor dos mais pobres? Estará disposto a pagar mais impostos, para que os poderes públicos intensifiquem os esforços pelo desenvolvimento? A comprar mais caro os produtos importados, para remunerar com maior justiça o produtor? E, se é jovem, a deixar a pátria, sendo necessário, para ir levar ajuda ao crescimento das nações novas?” (Papa Paulo VI – Carta Encíclica Populorum Progressio, §47)
A solidariedade é, sempre foi, e sempre será, urgente e necessária. E é igualmente urgente e necessária uma reflexão individual e comunitária sobre a nossa relação com os nossos bens. Uma reflexão exigente, que abraça várias dimensões e que nunca estará completa se não tivermos o foco no princípio fundamental: tudo isto que é meu e nosso é, na realidade, de todos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.