Do desejo da felicidade à fé e vice-versa

Diante deste desejo infinito que nos habita, a quem deveremos ouvir? Que credibilidade e que contributo tem Jesus a dar, para merecer a nossa atenção, no meio de tantas outras vozes que chegam até nós?

O discurso das Bem-Aventuranças segundo São Lucas, que escutámos recentemente, pode ser resumido em quatro preceitos: «bem-aventurados os pobres, os que têm fome, os que choram e os que são perseguidos» (cf. Lc 6, 17.20-26). Que estranha lógica de Jesus, com uma proposta tão contrária aos critérios do mundo, que nos sugere tantos outros acessos à desejada felicidade!

Importa, diante destas palavras de Jesus, questionar a razão pela qual nos interessa tanto este Seu discurso. De facto, reconhecemos em nós um desejo profundo de ser felizes e estas bem-aventuranças vão ao encontro desse anseio, que, por vezes, pode até aprisionar-nos num cego egoísmo ou levar-nos a buscar a felicidade em tantos lugares errados, caindo na frustração e no desânimo. Reconhecemos e partilhamos esse desejo de felicidade, de justiça, de paz, de amor, de plenitude no nosso coração. Assumimos também uma insatisfação e um protesto com a perspetiva de uma felicidade apenas a prazo. Queremos uma felicidade que não esteja limitada pelo tempo, mas que dure eternamente! Por onde seguir e onde a encontrar?

«A quem não tem rumo, todos os ventos lhe são desfavoráveis»: podemos ler este dito de Séneca nas Furnas, junto ao mar da Ericeira. Num tempo em que muitas das referências clássicas – Igreja, Família, Anciãos, Autoridades, Professores – são postas em causa, substituídas por «influencers» das redes sociais, vemos tantos à deriva, cheios de contradições, sem saber por onde seguir. Diante deste desejo infinito que nos habita, a quem deveremos ouvir? Que credibilidade e que contributo tem Jesus a dar, para merecer a nossa atenção, no meio de tantas outras vozes que chegam até nós? Por outras palavras, o que leva alguém do nosso tempo a aceitar ouvir Jesus falar sobre o caminho da felicidade?

Num tempo em que muitas das referências clássicas – Igreja, Família, Anciãos, Autoridades, Professores – são postas em causa, substituídas por «influencers» das redes sociais, vemos tantos à deriva, cheios de contradições, sem saber por onde seguir. Diante deste desejo infinito que nos habita, a quem deveremos ouvir?

Ainda antes de explorar as próprias bem-aventuranças que Jesus propõe, importa aqui apresentar alguns argumentos a favor da credibilidade de Jesus. Por um lado, Jesus não é um mentiroso populista que faz o discurso fácil com as promessas que a audiência quer ouvir, mas antes um Mestre que apresenta uma proposta exigente e que pede a conversão pessoal, mas que terá ampla recompensa já aqui na Terra e depois na vida eterna: «Todo aquele que tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras, por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais, já neste mundo, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, juntamente com perseguições, e, no mundo futuro, a vida eterna» (cf. Mc 10, 28-31). Para Jesus, a felicidade implica uma livre decisão nossa. Além disso, estes preceitos das bem-aventuranças são encarnados pelo próprio Jesus, assim os credibilizando pelo seu testemunho de felicidade que cativava tantas multidões que Ele chamava a segui-Lo. Muitos desses seguidores, ao longo de dois mil anos, destacaram-se pelo cumprimento destes preceitos e pela sua consequente vida feliz: são a multidão dos santos, uns anónimos e outros canonizados. Entre esses, importa citar Simão Pedro, que seguia Jesus por Ele ser o único que tem «palavras de vida eterna» (cf. Jo 6, 69). Finalmente, as Suas palavras são certificadas e credibilizadas pelo acontecimento da Sua morte e ressurreição, que O distingue de todos nós como o verdadeiro Messias, o Filho de Deus. Assim, Ele tem autoridade para nos apontar o caminho da felicidade. Porque Ele venceu a morte, vale a pena ouvir Jesus apontar-nos o caminho da Vida.

Neste caminho, a primeira bem-aventurança propõe-nos viver como pobres. Pffff, que desilusão… estávamos à espera de algo mais empolgante e vem isto… mas quem é que quer ser pobre?! Mais a sério, a pobreza não é um apelo ao miserabilismo, mas ao desapego dos bens temporais, recebidos como dom de Deus. Deste modo, seremos educados para a gratidão em todo o momento, vivendo em ação de graças a Deus porque tanto nos é dado gratuitamente, sem nada fazermos para o merecer. Embora a sociedade de consumo prometa a felicidade na compra e na posse de determinado bem, a nossa experiência pessoal e a palavra de Jesus dizem-nos que a felicidade não radica na avareza, na luxúria ou na inveja. S. Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, sublinha essa ideia dizendo que «o tempo é breve» (1 Cor 7,29-31), pelo que não podemos por a nossa esperança nesses bens temporais que serão perecíveis. S. Paulo propõe que «no tempo que resta, (…) os que compram sejam como não possuindo e os que usam este mundo sejam como não abusando» (tradução minha). O convite à pobreza, concretizado pela própria vida de Jesus que Se fez pobre e imitado por tantos santos, como S. Francisco de Assis ou S. Nuno de Santa Maria ou S. Madre Teresa de Calcutá, convida-nos a repensar a nossa relação com os bens materiais, assumindo a vocação de administradores, não vivendo como donos, mas também não nos deixando dominar por eles. Convida-nos igualmente a refletir sobre a nossa relação uns com os outros, como dons que somos, criados para amar e ser amados, não como objetos a desfrutar.

Na segunda bem-aventurança, Jesus convida-nos à fome. Que estranho! Afinal de contas, a fome é um flagelo e infelizmente nem temos sabido gerir os recursos alimentares existentes na Terra para que todos tenham pão. Certamente não é essa a fome a que Jesus alude. O instinto de sobrevivência, despertado pela fome, leva-nos a buscar o alimento para cuidar do corpo, que nos pode dar tanto prazer. A nossa desordem acontece quando vivemos para esses prazeres e para esses alimentos, movidos pela tentação da gula. Digo-o com consciência da luta que todos travamos pela virtude da temperança, também pela vontade de manter a formosura e ainda consolado pela palavra do Papa João XXIII, que dizia que «a gula era o pecado dos bons»! Jesus, que é verdadeiro Homem e também passou fome no jejum do deserto e na cruz, gostava de comer e beber certamente – o Seu primeiro milagre foi transformar água em vinho num casamento e até tinha injusta fama de «glutão e beberrão» – e convida-nos à justa moderação na alimentação e a viver da fome de Deus e do Seu Amor: é essa fome que nos leva a buscá-Lo na oração e a vir ao Seu encontro em cada Missa, onde nos é dado o Alimento da Palavra de Deus e o Pão do Céu, o Corpo de Cristo na Eucaristia. S. Paulo exorta-nos, nesse sentido, a «aspirar às coisas do Alto e não às coisas da terra» (Col 3,1-2). Precisamos de ter fome e alma grande e desejos largos, como Jesus, que nos desafia a lançar a semente do Reino!

Jesus propõe que tenhamos a coragem de chorar. O nosso choro será a nossa oração e Ele conhece as nossas lágrimas.

A terceira bem-aventurança convida-nos a chorar. A sério, chorar? Confesso que pensei brevemente que talvez Jesus estivesse a receber uma comissãozinha de alguma empresa de lenços de papel de Nazaré ou de Belém… na verdade, somos constantemente seduzidos por imensas propostas de entretenimento individual ou comunitário, que nos distraiam das preocupações e de alguma tristeza ou angústia, sugerindo até o uso de máscaras ou maquilhagem que disfarce a nossa dor. Essas propostas, em si, têm boa intenção, mas podem até agravar a nossa solidão. Jesus propõe que tenhamos a coragem de chorar. O nosso choro será a nossa oração e Ele conhece as nossas lágrimas. Aliás, a vida de Jesus também é marcada pelo choro, como na morte de Lázaro ou em Jerusalém e pela Sua capacidade de compadecer e consolar os que choram. Mais, o nosso choro partilhado será também uma porta aberta para que outros nos consolem, cuidem e se sintam responsáveis por nós. Lembro aquele vídeo tão comovente de uma criança portuguesa em França a consolar um jovem francês que chorava a derrota no Euro 2016. Chorar com os outros e pelos outros humaniza-nos! Esta proposta de Jesus leva-nos a vencer a preguiça, a inércia e o comodismo de uma vida distante das dores e das dificuldades dos outros para assumirmos um renovado compromisso comunitário, onde há realmente espaço para ouvir e acolher cada um. Também nesta bem-aventurança identificamos alguns dos propósitos do atual Sínodo que tem em vista a oração e a reflexão sobre a vida comunitária na Igreja. Como é bom quando choramos juntos e nos alegramos juntos!

Com toda a humildade, precisamos de reconhecer que a vida cristã autêntica, testemunhada no seio da família, na comunidade dos amigos, no trabalho ou mesmo dentro da Igreja, pode gerar incompreensões e ser «sinal de contradição» doloroso, mas pode também ser ocasião de despertador de outros para Deus.

A quarta bem-aventurança convida-nos a aceitar as perseguições decorrentes do nosso testemunho cristão. Sim, porque as perseguições aos cristãos permitiam acesso aos melhores lugares nos espetáculos, mesmo dentro da arena…! Com toda a humildade, precisamos de reconhecer que a vida cristã autêntica, testemunhada no seio da família, na comunidade dos amigos, no trabalho ou mesmo dentro da Igreja, pode gerar incompreensões e ser «sinal de contradição» doloroso, mas pode também ser ocasião de despertador de outros para Deus. Sem cair em proselitismo (no mau sentido do termo), não deveremos calar o nosso testemunho cristão, lembrando que a nossa verdadeira felicidade é que cativará outros para Deus! Como é bom quando vivemos em unidade de vida, entre o que acreditamos, o que anunciamos e o que fazemos, em cada lugar. Porém, não nos deixemos abater pela tentação do desânimo ou da ira, face aos que nos perseguem, ou pela tentação do orgulho, que nos faça assumir presunçosamente alguma superioridade intelectual ou moral sobre os outros. Esta bem-aventurança invoca o exemplo da própria cruz de Jesus e também do «sangue dos mártires» e confessores, cuja vida entregue livremente pela fé se tornou «semente de cristãos» (Tertuliano). Precisamos de novos confessores da fé, cheios de alegria, que cresce na medida em que a fé é partilhada!

Termino com um uma última bem-aventurança, dita por Jesus a Tomé: «felizes os que acreditam sem terem visto» (cf. Jo 20,29). Esta última bem-aventurança descreve a nossa aventura crente, suportada por dois mil anos de história do cristianismo. Estamos aos ombros de tantos outros, na fé da Igreja, na companhia de Jesus, que nos ensina a viver: do desejo da felicidade à fé e vice-versa!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.