Deixar pousar para fazer memória

Queiramos cuidar do modo como guardamos o que nos foi dado a ver: nos lugares por onde andámos, nos rostos a que sorrimos, nas intuições, no que nos fez tremer e sonhar. Se não cuidarmos do que ficou, nada permanecerá.

Nunca tinha dedicado especial atenção ao fim de um ano. Sempre julguei estar no dia 1 de Janeiro a relevância do 31, de modo que, até à data, descuidadamente o ignorei. Quase à moda de um Sábado Santo apressado, ‘já sei o que vai acontecer, conheço o que aí vem’. No que a fins diz respeito, cresci no hábito de concentrar a atenção no por-vir, acreditando que o por-vir se baste a si próprio, que me renove pelo simples facto de eu consentir à sua chegada: ‘O ano novo vai ser bom, porque vem aí e é novo’.

Só que, este ano, deu-se um evento desconcertante: terminei, na noite de 12 de dezembro, um caderno de oração, que – aos meus olhos – acabara de começar. A primeira entrada foi dia 5 de setembro. Não seria suposto um caderno deste tamanho durar mais tempo? ‘Ainda ontem o abri…’

Na manhã de dia 13 de dezembro, o autocarro abriu as portas ao meu sobrolho mais vincado, a um ar mais desconcertado do da véspera. É que, na mochila, viajava um caderno estéril, imaculado, que parecia ter vindo fora de tempo. Se desse para ler vincos na pele, a minha expressão diria qualquer coisa como: ‘O que faço com os registos que ficaram no caderno que passou? Como inauguro o vazio de páginas que julgava só ter de pisar no dia 1 de janeiro? É suposto haver uma ponte entre os dois cadernos? Não escrevo nada até lá? Assim até fica tudo certinho, seguindo o que tinha calculado…’

As três páginas vazias são o convite subtil dos fins. E não dos começos, até porque é bastante mais difícil confinar começos a três páginas. O real problema dos fins é: ‘como mostrar o caminho feito até aqui sem ser na íntegra, sem expor, passo a passo, o que aconteceu?’.

Ainda pensei em comprar agrafos, ou aprender a coser papel – não me pareceu certo. Por isso, na primeira página do novo caderno, escrevi:

‘cenas dos episódios passados…’

– introito seguido de três páginas vazias e, depois dessas, do retomar da oração, tal qual a deixei.

As três páginas vazias são o convite subtil dos fins. E não dos começos, até porque é bastante mais difícil confinar começos a três páginas. O real problema dos fins é: ‘como mostrar o caminho feito até aqui sem ser na íntegra, sem expor, passo a passo, o que aconteceu?’.

Pode dia 31 de dezembro ser o dia da revisão: dia de folhear o caderno antigo, na esperança de o condensar nas três páginas do ano que, como um abismo, agora se rasga, aberto. A beleza do caderno antigo é que, nele, o Senhor falou! Pode ter murmurado no segredo de um instante; ou ter dado matéria para um grande crescimento espiritual. Mas que não se ignore o facto radical, que é: o Senhor falou. Partamos daí.

O desmazelo com os fins faz com que os começos não sejam, de facto, novos. Fá-los atabalhoados. É que a maneira como guardamos as coisas molda aquilo em que se tornam (regra que também se aplica a cadernos e a roupa acabada de engomar). Queiramos cuidar do modo como guardamos o que nos foi dado a ver: nos lugares por onde andámos, nos rostos a que sorrimos, nas intuições, no que nos fez tremer e sonhar. Se não cuidarmos do que ficou, nada permanecerá. Será tudo soprado a fragmentos dispersos de um tempo enterrado. Guardar com cuidado o que ficou é dar espaço – e tempo! – para que o que tem de pousar, pouse. Deixar que pouse é fazer memória. Que é o mesmo que dizer: é tornar a memória viva.

As três páginas vazias anunciam, em silêncio, a possibilidade de condensar o que se viveu e por onde se passou. Só assim caberá tudo na mochila.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.