Dá-me a honra desta dança

Desconcentrada, inquieta, frustrada por não conseguir “fazer a coisa bem”, desisti. Ou melhor… desisti de controlar.

Há uns tempos, como tantas vezes, andava em luta, à procura do silêncio na oração. Nesse dia, até me tinham sido propostos uns pontos para me guiar, para me ajudar a desenterrar do coração a matéria-prima para trabalhar com Deus. Mas nem isso me serviu para aqueles minutos difíceis de aproveitar. Muita agitação, muitos temas soltos a ir e vir, sem princípio, meio ou fim.

Desconcentrada, inquieta, frustrada por não conseguir “fazer a coisa bem”, desisti. Ou melhor… desisti de controlar. Aceitei que aquele tempo não ia ser o que eu tinha pensado, que aquilo que Deus me queria dizer não tinha nada a ver com alguma ordem de trabalhos que pudesse ter escrita na cabeça. E deixei-me levar, de olhos fechados, como numa dança. E imaginei-me, de facto, a dançar.

Gostar de dançar não significa dançar bem, e dançar sozinho não tem nada a ver com dançar com um par. Dita a tradição que as danças a pares são guiadas pelos homens; as mulheres deixam-se conduzir. Pela minha experiência, esta parte que nos compete é muito mais difícil, porque é preciso ouvir e sentir a música e o seu ritmo, mas confiar e deixar fluir, sem sermos nós a decidir se vamos para a esquerda ou para a direita, para trás ou para a frente, mais rápido ou mais devagar. Exige um equilíbrio tenso entre o esforço da concentração e a liberdade do abandono, para não haver pisadelas, tropeções e colisões de joelhos.

Descobri, por tudo isto, que a oração é como uma dança com o Espírito que me quer guiar pela música que vai tocando a cada momento. Ninguém dança a valsa ao som de kizomba, nem se dança twist ao som de samba. Assim, também a oração vai pedindo gestos e atitudes diferentes, consoante o que se passa dentro e fora de mim.

Uma vez, um amigo dizia-me: “o cantor escolhe a música que canta e nós temos de dançar sempre; pode mudar o ritmo, pode mudar o estilo, mas temos de dançar!”. Contava-me isto porque conversava com ele sobre a sua perseverança e alegria genuína, que me deixavam desarmada: sabia bem as dificuldades que diariamente enfrentava. Acho de uma enorme beleza que se possa viver a vida, tantas vezes tão exigente, de uma forma leve e alegre, sem ser leviana ou ingénua. Para ele, a dança não era só para dias de festa – era também uma forma de fidelidade.

Na oração – como na vida e na dança -, não escolho a música, mas procuro confiar que, com rodopios e tropeções pelo meio, começo e acabo sempre nas mãos de Deus. Sou convidada a receber o que estiver a tocar, com o amparo do Senhor que me chama ao Seu encontro.

Muitas vezes, quando me disponho a rezar, o meu maior bloqueio é a expectativa que tenho desse momento. Mas a oração não é uma coreografia ensaiada! Posso estar familiarizada com a música que está a tocar no momento ou até estar à vontade com o estilo e conhecer alguns passos. Mas a maior parte das vezes é improviso e isso exige muita intimidade. Exige que procure conhecer cada vez melhor o Par com quem danço e os Seus movimentos e que me deixe surpreender por Ele. Mesmo que a dança não flua, a música continua a tocar e o Espírito permanece disponível para guiar e dar vida. Tropeço e recomeçamos, vezes sem conta. E, quanto mais danço, mais vezes me consigo abandonar. Vou aprendendo a ser maleável, sem ser um peso morto; a estar inteira, mas não estática. E tropeço mais umas vezes, mas retomamos.

Nesse dia em que rezar começou por parecer uma luta frustrante, não resolvi nenhum assunto, mas saboreei a dança. E apercebi-me de que, acima de tudo, a dança é gratuita. A dança não procura respostas, utilidade, produtividade ou resultados. O bom da dança é a dança. E, cada vez mais, devia ser assim a minha oração: consciente da honra e da graça que é viver em intimidade com Deus, desfrutar do encontro, da relação que se balança ao som do que tiver de ser.

Façamo-nos à pista.

Photo by Ardian Lumi on Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.