Cristo Rei da Glória – livres para cantar 

Porém, longe de se demitir da Sua realeza, Jesus, o Filho de Deus, reina amando, servindo e dando a vida e convidando cada um a segui-Lo tomando a cruz.

Nunca cantei muito bem, mas sempre gostei de cantar e bem alto. Ainda eu era jovem – agora como padre também serei jovem até aos 50, se Deus quiser –, dei por mim descarada e livremente a cantar a música «Cristo Rei da Glória» com o coro do CUPAV num Domingo de Cristo-Rei. Ainda por cima, preguiçoso como eu era, inspirado pela máxima “cantar é rezar duas vezes”, passei a cantarolar vezes sem conta ao longo destes anos, especialmente nestes dias em que termina o ano litúrgico e nos preparamos para o Advento e Natal. A partir desta expressão da fé cristã, proponho neste artigo algumas ilações musicais.

Antes de mais, é preciso cantar que Cristo é realmente Rei e que é Ele que me rege. Vários exemplos ilustram a Sua condição real, desde logo o coro dos anjos que canta os Seus louvores (cf. Lc 2,13-14). O título de Rei é reconhecido pelos próprios magos do Oriente que procuram Jesus e se dirigem ao rei Herodes, perguntando: «Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.» (cf. Mt 2,2). O rei Herodes, sentindo a sua autoridade ameaçada pelo nascimento profetizado por Miqueias – «porque de ti – Belém Efrata – vai sair o Príncipe que há-de apascentar o meu povo de Israel» (cf. Mt 2,6 citando Mq 5,2) – ordenará a morte de todos os meninos recém-nascidos, tentando a todo o custo impedir o Seu reinado e obrigando à partida apressada da Sagrada Família, como refugiados, para o Egipto.

Assim, cobardemente Pilatos entrega Jesus para ser crucificado. A causa da morte de Jesus é religiosa mas também política: Ele é Rei.

Já durante a Sua vida pública, Jesus, por diversas ocasiões, apresenta o Reino de Deus, razão pela qual foi enviado a pregar (cf. Lc 4,43). Ele reconhece-Se no título de «Filho de David» (cf. Mc 10,47), que remete para a história do povo de Israel no reinado do grande Rei David (séc. X a.C), ungido pelo profeta Samuel para governar com justiça e unificar o povo (veja-se o I e II Livro de Samuel). De facto, à época de Jesus, a expressão tinha um cunho muito significativo: manifestava a expectativa messiânica de um Messias-Rei, descendente da linhagem de David, que viria reunir novamente o povo de Israel e finalmente expulsar o poder romano daquela terra sagrada. Essa esperança gera uma aclamação triunfal «Hossana ao Filho de David» (cf. Mt 21,9) a Jesus, montando num jumentinho como sinal da sua realeza, na entrada em Jerusalém, na semana da celebração da Páscoa. Tal evento de massas desperta enorme receio aos sacerdotes, escribas e doutores da Lei, com medo de uma violenta reacção romana a este movimento popular, indignados com esta aparente blasfémia e incrédulos que Jesus pudesse ser o aguardado Messias. Por isso, os sacerdotes decidem a morte de Jesus e, após O prenderem, dá-se o diálogo no Sinédrio:

«O Sumo Sacerdote disse-lhe: «Intimo-te, pelo Deus vivo, que nos digas se és o Messias, o Filho de Deus.» Jesus respondeu-lhe: «Tu o disseste. E Eu digo-vos: Vereis um dia o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.» (cf. Mt 26, 63-64).

A resposta de Jesus, citando a profecia de Daniel acerca da realeza do Filho do Homem (cf. Dn 7, 13) manifesta a Sua plena consciência de realeza divina e determina definitivamente a injusta acusação religiosa de blasfémia e a acusação política de usurpação do poder de César que Ele sofre. Ao apresentarem Jesus a Pilatos, sob esta última acusação, os sacerdotes fazem-lhe chantagem: «Se libertas este homem, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei declara-se contra César.» (cf. Jo 19, 12). Assim, cobardemente Pilatos entrega Jesus para ser crucificado. A causa da morte de Jesus é religiosa mas também política: Ele é Rei.

Perante este rei, podemos identificar várias atitudes. A Sua realeza desconcerta Pilatos e tantos ainda hoje:

«Disse Pilatos a Jesus: «Tu és o Rei dos Judeus?». (…) Jesus respondeu: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que Eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui». Disse-Lhe Pilatos: «Então, Tu és Rei?». Jesus respondeu-lhe: «É como dizes: sou Rei.» (cf. Jo 18, 33b.37)

Diante deste Rei, alguns há que rejeitam ostensivamente esta Sua Autoridade e dizem «não queremos que ele reine sobre nós» (cf. Lc 19, 14), em nome de uma errada busca de liberdade. Recusam-se a cantar a um Deus, porque querem reinar sobre si mesmos.

A fraqueza e derrota aparente de Jesus torna-se a Sua grande vitória e a instauração do Reino acontece pela força do trono da Cruz, onde Ele é elevado e coroado de espinhos, e pelo acontecimento da Ressurreição que prova o amor mais forte do que a morte e o pecado.

Talvez outros preferissem um tipo de Rei diferente de Jesus, com uma geografia territorial bem definida, mais autoritário, com um poderoso exército de anjos e homens e mão firme diante das injustiças e da corrupção moral dos “desafinados”. No fundo, esses cantam desalinhados e por vezes até julgam os outros “desafinados”, recusando a pertença a esse coro da Igreja. Recusam-se a cantar a um Deus assim.

Porém, longe de se demitir da Sua realeza, Jesus, o Filho de Deus, reina amando, servindo e dando a vida e convidando cada um a segui-Lo tomando a cruz. A fraqueza e derrota aparente de Jesus torna-se a Sua grande vitória e a instauração do Reino acontece pela força do trono da Cruz, onde Ele é elevado e coroado de espinhos, e pelo acontecimento da Ressurreição que prova o amor mais forte do que a morte e o pecado. No Reino de Deus, os Seus súbditos são também atraídos livremente e elevados a nova condição: «já não vos chamo servos, mas amigos» (cf. Jo 15, 15) e filhos de Deus, em Cristo Jesus (cf. Gal 3,26), membros da Igreja. A promessa do Reino já começou a cumprir-se e tem o horizonte da Glória do Céu, onde tantos anjos e santos “já cá cantam”.

Assim, a nossa relação com Jesus Cristo Rei e a Igreja tem consequências para a nossa vida já aqui e agora. De facto, a tensão escatológica entre a pertença ao Reino de Deus e aos reinos terrestres, entre o poder espiritual e o poder temporal, foi recorrente ao longo da história da Igreja e a pretensão de acumular os dois poderes foi nefasta em ambos os sentidos. Embora Jesus tenha ensinado «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (cf. Mt 22,21), não só o poder temporal quis imiscuir-se nas questões do foro espiritual (veja-se ainda agora a questão do sigilo da confissão sacramental), como o poder religioso da Igreja também por vezes extravasou o seu papel junto do poder temporal. Porém, em 1925 o Papa Pio XI quis instituir o Domingo de Cristo Rei, não apenas para celebrar o Concílio de Niceia do ano 325 que afirmava o Filho consubstancial ao Pai também na realeza, mas igualmente tendo em vista a urgência da justa manifestação desse reinado de Cristo em todas as dimensões da vida terrena de cada cristão.

A imprensa acompanhou a sua morte em directo, esperando que ele negasse a fé para sobreviver. Ao invés, o padre Miguel Pro ajoelhou-se para rezar, pediu perdão para os seus carrascos armados de espingardas, estendeu os braços em forma de cruz e morreu gritando: VIVA CRISTO REI!

Contudo, a tantos cristãos se tem colocado a decisão conflituosa entre o reconhecimento de Cristo como Rei em todas as dimensões da vida e a obediência às autoridades civis (muitas vezes arrogando estas uma pretensão de divindade, como no caso dos imperadores romanos até ao séc. IV, mas também outros mais recentes). Nestas circunstâncias, é admirável o carácter e a coragem de tantos santos mártires e confessores, que não se dobraram diante da autoridade terrena tirânica, mas afirmaram a fé cristã com a própria vida perseguida. Aqui não houve “playbacks”.

Em particular, é oportuno mencionar a história de Beato mexicano Miguel Pro, sj (1891-1927). Tendo sido salvo de uma doença mortal na infância, por graça de Nossa Senhora de Guadalupe, Miguel Pro cresceu numa família numerosa iluminada pela fé cristã e com 20 anos entrou na Companhia de Jesus. Em 1926, já como padre jesuíta no México, o padre Miguel enfrentou a terrível ameaça do Presidente Plutarco Calles, que proibiu qualquer referência a Deus e o culto católico no país e mandou perseguir e matar muitos sacerdotes, religiosos e leigos católicos. Nesta lógica inaciana, todos precisamos de recordar quais as nossas bandeiras e qual o nosso Senhor a Quem servimos. Desobedecendo justamente às autoridades civis e obedecendo a Deus, o padre Miguel continuou clandestinamente a celebrar Missa e servir o povo de Deus, distribuindo a Comunhão, confessando e organizando sistemas de catequese e escrevendo muitas cartas para animar a todos. Por tudo isto, foi preso e condenado à morte a 23 de novembro de 1927. A imprensa acompanhou a sua morte em directo, esperando que ele negasse a fé para sobreviver. Ao invés, o padre Miguel Pro ajoelhou-se para rezar, pediu perdão para os seus carrascos armados de espingardas, estendeu os braços em forma de cruz e morreu gritando: VIVA CRISTO REI!

Volto à música com que comecei este artigo: «Cristo Rei da Glória» é também uma manifestação da nossa certeza da fé professada no Credo de que Ele «de novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o Seu reino não terá fim». Embora por vezes mais desafinados, ainda que tentados a cantar a solo ou até a fingir apenas fazendo “playback”, busquemos com a ajuda de Deus superar essas tentações e voltar novamente ao coro, com tantas vozes e cada vez mais afinados por Ele, para que todos saibam Quem reina na nossa vida e Quem nos torna mais livres para cantar.

Fotografia – Pedro Santos – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.